Cultura
CARMINA BURANA e a "Poesia dos Goliardos"
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6. "CARMINA BURANA"
Dentre os cancioneiros goliárdicos - em que se destacam os "Carminas" de Cambridge, de Arundel, de Liège, do Vaticano e de Ripoll - "Carmina Burana" é considerado o mais extenso, representativo e diversificado, pois esse conjunto contém todas as características da poesia goliárdica, além de trazer em si um retrato fiel, crítico da época em que foram elaboradas, ou seja, exemplifica tudo o que foi exposto até aqui.
A maior parte dessas canções é em latim, mas há várias em alemão antigo, os nas duas línguas; a mistura de duas línguas, especialmente a do latim com uma língua viva, feita com o objetivo de criar uma poesia de efeitos humorísticas ou satíricos, nos quais se manifesta, em geral, o conflito de classes numa sociedade, faz com que, em Literatura, essa poesia seja classificada como POESIA MACARRÔNICA. "Carmina Burana" é considerado o mais antigo exemplo de poesia macarrônica de que se tem notícia.
Sobre o manuscrito do cancioneiro, informa Maurice Van Woensel :
"O manuscrito de "Carmina Burana" consiste em 112 folhas de pergaminho fino, de 17 por 25 cm, que foram copiadas por volta de 1230 na atual Bavária; a encadernação foi confeccionada muito tempo depois. Trata-se de uma compilação de canções, provavelmente por três copistas diferentes, e ilustrada com oito miniaturas e com vinhetas. Certas canções vêm com uma anotação musical rudimentar. Estudiosos conseguiram reconstituir o que foram as melodias originais delas..." (10)
A seguir, alguns exemplos dessas canções , que foram "ressuscitadas", divulgadas e popularizadas quando o alemão Carl Orff compôs a cantata cênica com o mesmo nome do manuscrito que têm encantado tantos leitores/ouvintes, principalmente pela sua "atualidade". Os poemas (canções) serão transcritos em português moderno, seguindo a tradução que Maurice von Woensel apresentou em sua magnífica obra. No final de cada texto, está colocado o número da canção dentro do cancioneiro ( CB nº ...,
onde CB= Carmina Burana ). A roda da fortuna, no codex dos Carmina Burana. Ó Fortuna,
tal a lua,
uma forma variável!
Sempre enchendo
ou encolhendo:
ó que vida execrável!
Pouco duras,
quando curas
de nossa mente as mazelas
a pobreza,
a riqueza, tu derretes ou congelas.
Bruta sorte,
és de morte:
tua roda é volúvel,
benfazeja,
malfazeja,
toda sorte é dissolúvel.
Disfarçada
de boa fada,
minha ruína sempre queres;
simulando
estar brincando,
minhas costas nuas feres.
Gozar saúde,
mostrar virtude:
isto escapa minha sina;
opulento
ou pulguento
o azar me arruína.
Chegou a hora,
convém agora,
o alaúde dedilhar;
a pouca sorte
do homem forte
devemos todos lamentar."
(CB no. 17)
Sem dúvida, "ó Fortuna" é a carmina burana mais conhecida, a mais popular, principalmente depois que se tornou uma cantata de Orff: o vocativo inicial indica que se trata de um lamento ante a pouca estabilidade de Fortuna, a deusa da sorte ( "Chegou a hora,/convém agora,/o alaúde dedilhar;/ a pouca sorte/do homem forte/ devemos todos lamentar.").
A personificação feminina da fortuna, ou seja, da sorte humana não é gratuita: tal como uma mulher, ela é volúvel, instável, temperamental, que contém em si elementos ora positivos, ora negativos. Recorre-se, por isso, à antiga alegoria da roda da Fortuna para simbolizar o perpétuo "sobe e desce" da sorte humana.
Um dos elementos mais interessantes do poema é a maneira como o seu autor concretizou a RODA DA FORTUNA (seu caráter volúvel, sua instabilidade) : através de antíteses que, colocadas em posições verticais, "giram"("rodam") no texto, já que em alguns momentos, o elemento de cima representa algo bom/ o de baixo, ruim, e em outros, o elemento de cima representa algo ruim/o de baixo, bom. Por exemplo:
enchendo X encolhendo
pobreza X riqueza
vida X morte
derretes X congelas
benfazeja X malfazeja
sorte X azar
opulento X pulguento
Tal concretização da roda da fortuna
demonstra o indiscutível valor literário (poético) dos poemas goliardos,
além da preocupação com o conteúdo crítico.
II- "UMA JOVEM PASTORA"
Uma jovem pastora,
logo ao sol nascer,
levava seu rebanho
e lã para tecer.
Seu rebanho inclui
carneiro e jumentinha
cabrito e cabrita
bezerro e bezerrinha.
Ela viu na relva,
sentado um estudante:
"Senhor, que faz aqui ?
Brinquemos um instante!"
(CB no. 90)
"Uma jovem pastora", cujo nome já sugere se tratar de uma "pastorela" é um poema goliardo que conta um episódio de uma pastora que logo cedo leva o rebanho para pastar. Chegando no pasto ( na relva), a pastora encontra um estudante (que pode ser um goliardo) .
Como seu rebanho é formado por "jovens casais "( cabrito-cabrita,bezerro-bezerra), o poema indica que a pastora e o estudante formam outro "casal", pois ela o convida a "brincar"( sentido malicioso de "fazer amor"), como fazem os outros "casais" que ali se encontram. Fazer amor aparece como algo tão natural quanto o sol que nasce, a relva, a lã, o rebanho... E esta pastorela aparentemente despretensiosa toca num assunto muito comum entre os goliardos : a invocação da mocidade, da primavera e da natureza contra o espírito ascético da Igreja.
III- "AI DE MIM, QUE MEDO"
Ai de mim, que medo,
furaram meu segredo:
amava loucamente.
Revela o ocorrido
meu ventre entumescido;
o parto é iminente.
Mamãe me fustiga,
papai me castiga,
só fazem me xingar.
Fico em casa trancada,
não piso na calçada,
não posso mais brincar.
Se eu na rua andar,
todos vão me olhar:
"Um monstro a passar!"
Vêem com mesquinhez
minha gravidez
e passam sem falar.
Cotovelos se afrontam,
dedos sujos me apontam
como malfeitora.
Olhares me incriminam,
à fogueira me destinam,
a grande pecadora.
É o fim da picada:
ser a moça mais falada
desta freguesia!
Dores sem fim padeço,
aflita, desfaleço,
choro de agonia.
E tudo agravou-se,
meu noivo exilou-se,
para longe daqui.
Ante a paterna vingança,
exilou-se na França
tão distante de mim.
Ele estando ausente
receio que não agüente
esta dor sem fim. "
(CB no. 126)
"Ai de mim, que medo" , tal como numa primitiva "cantiga de amigo", é um poema goliardo em que o eu-lírico é feminino e que, e embora de autoria de um homem, expressa o descontentamento de uma mulher: uma jovem quase menina ("não posso mais brincar") encontra- se com medo por terem descoberto (ou, na gíria, "furado") seu segredo: uma gravidez conseqüência do ato de amor.
A gravidez e outras conseqüências desse ato de amor são todas da mulher; embora tenha sido feita pelo casal, a criança é de responsabilidade exclusiva da mãe desde o ventre (é no corpo da mãe que ela habita desde a sua concepção); o amante a abandonou e é ela quem é penalizada pelo "pecado" cometido por ambos: no próprio corpo, pois ela é castigada pela barriga saliente ( "ventre entumescido") que a assemelha a "um monstro"; em casa, pelos pais; fora de casa, de quase onde não sai, pois todos a olham e dela falam com "mesquinhez e incriminação" ( conforme as estrofes de 4a. à 10a.), pois seu pecado seria digno da fogueira, o que faz referência à Inquisição.
Em suma, essa gravidez lhe traz dores no corpo e na alma e ,em seu lamento expresso no poema, essa mulher-menina mostra a covardia do amante que a abandonou (conforme as três últimas estrofes) e a hipocrisia da sociedade ( o que ela acha "o fim da picada"= o mais dolorido) que condena só a ela por ter engravidado ("crescido e se multiplicado") fora do casamento.
IV-" SE UM RAPAZ E UMA DONZELA"
Se um rapaz e uma donzela,
ficassem juntos na mesma cela...
R. Ó casal abençoado!
O amor tempera,
anima o noivado;
o tédio se oblitera.
Brincam juntos num só gesto
de bocas, pernas e o resto!
R. Ó casal abençoado...
(CB no. 183)
"Se um rapaz e uma donzela" parece endossar o relacionamento sexual ("brincam juntos num só gesto/ de bocas, pernas e o resto") entre os jovens antes do casamento ("o amor tempera / anima o noivado") . A ousadia maior, no entanto, está na sugestão de que tais jovens são religiosos ("cela"= quarto de mosteiro) e na caracterização do casal como "abençoado", o que, na verdade, eles jamais seriam (só pode ser uma ironia, portanto: outra crítica ao ascetismo)
V- "AH, SE EU PUDESSE COMPRAR"
Ah, se eu pudesse comprar
o mundo, do Reno até o mar.
Tudo isto me pode faltar:
basta a rainha da Inglaterra
em meus braços se deitar."
(CB no. 145)
Esta outra sátira goliárdica tem como objeto a rainha da Inglaterra, Leonor de Aquitânia,protetora das Letras e das Artes, mãe do famoso rei Ricardo Coração de Leão. Os poetas (trovadores) "protegidos"pela rainha Leonor têm acesso à vida palaciana e, além de divulgarem suas obras e se destacarem na Literatura da época, desfrutam dos privilégios desse tipo de vida e, como insinua o texto, do leito da rainha. O sonho do eu-lírico, segundo o poema, é ter em seus braços (de poeta) a rainha Leonor, pois, com ela, vem o que há de melhor no "mundo" .
VI- 'QUANDO NA TABERNA ESTAMOS"
Quando na taberna estamos,
falar da morte evitamos,
jogar, isto nos conforta,
o dado é que importa.
Quem paga o pato na taberna ?
Qual a lei que nos governa?
Tais perguntas em tua cabeça
permita-me que esclareça.
Se não bebem, jogam dados,
ou cometem outros pecados.
Vários devem, ao jogar,
sua roupa empenhar:
ficarão bem trajados
ou com trapos camuflados,
ninguém aqui teme a morte,
todos, bebendo, tentam a sorte.
Brindam logo a quem paga
com o vinho que se traga,
duas vezes os prisioneiros,
três vezes nossos herdeiros,
quatro vezes os batizados,
cinco vezes nossos finados,
seis, todas as mães solteiras,
sete, os guardas das fronteiras.
Oito, os confrades meliantes,
nove, os monges caminhantes,
dez, os nossos navegantes,
onze vezes os discordantes,
doze vezes os flagelantes,
treze vezes os viandantes.
Por fim, ao Papa, e ao Rei
brindam nossos fora-da-lei.
Bebe a dona, bebe o senhor,
bebe o cabo e o monsenhor,
bebe o dono, bebe a dama,
bebe o servo, bebe a ama,
o apressado e o tardo,
bebe o branco, bebe o pardo,
o burguês com o vago
o camponês com o mago.
Bebe o pobre, bebe o doente,
o marginal, o indigente,
o moço e o veterano,
bebe o abade com o decano,
bebe o irmão, bebe a irmã,
bebe o velho, bebe a anciã,
bebe o nobre, bebe o vil
bebem cem e bebem mil.
Com seis ducados não pagamos
todo vinho que tragamos
bebendo todos à porfia.
Mas ao beber na alegria,
falsos irmãos de nós judiam
sempre nos vilipendiam.
Quem nos inveja, seja maldito,
no livro dos justo não fique inscrito."
(CB no. 196)
Segundo Maurice van Woensel, esta é "a maior de todas as canções de bebedores da Idade Média e uma obra de arte de ritmo e de melodia, bem evidenciados na frenética versão musical de Orff.".
"Quando na taberna estamos" é um poema metalingüístico, pois nele a taberna é retratada como lugar ideal de elaboração e apresentação de canções goliárdicas, em troca de comida, bebida e estadia. Aliás, é na taberna que os goliardos se encontram e que o trinômio AMOR-VINHO-JOGO se concretizam:
"se não bebem, jogam dados, /
ou cometem outros pecados".
Podem perder - ficando com "trapos camuflados"
- ou ganhar o jogo - ficando "bem trajados" ,
o que, curiosamente, vem contra o provérbio que diz que
"o hábito não faz o monge", pois, no caso,
é o traje que indica a classe a que pertence o indivíduo
e seu desempenho como jogador:
trapos=pobreza=falta de sorte no jogo /
bons trajes=riqueza=sorte no jogo.
Na hora de beber, não há diferenças entre os tipos sociais que estão na taberna , pois a bebida iguala a todos (veja as estrofes 5 e 6): "a dona", "o senhor", "o cabo", o "monsenhor", "o nobre", "o vil" BEBEM JUNTOS.
Qualquer motivo, por isso, é suficiente para se cair na bebida; brinda-se a qualquer coisa, a qualquer pessoa: primeiro "a quem paga" a bebida, depois aos marginalizados da sociedade ( aos prisioneiros, aos finados, às mães solteiras, aos monges vagantes, aos fora-da-lei, etc) e , ao contrário do que acontece em sociedade, "por fim, ao Papa e ao Rei".
Depois de tanta bebida( excesso concretizado pela igualmente excessivas repetições do verbo BEBER nas estrofes 5 e 6), tudo volta ao normal e os marginalizados - incluindo neles os goliardos - voltam a ser maltratados pelos seus "irmãos" (palavra que indica que o goliardo que fala no poema é um religioso, é um monge, um vagante) e o poema termina maldizendo tais injustiças e os falsos irmãos (irmãos só na bebida?).
Quanto às palavras que compões o texto, observa-se a presença da gíria "pagar o pato"(=ser punido); "traga"é, ao mesmo tempo, o verbo tragar e o verbo trazer; a disposição e as rimas nas estrofes 3 e 4 ; a igualdade entre tipos sociais diferentes na hora da bebida está representada pela "aproximação de contrários" (antíteses), nas estrofes 5 e 6: "bebe o servo, bebe a ama"/ o apressado e o tardo... bebe o nobre, bebe o vil"
Encerrando os comentários a respeito dos textos aqui mostrados, o presente artigo também termina, sugerindo ao leitor mais exigente e curioso em relação ao assunto aqui tratado que procure conhecer "Carmina Burana", a obra dos goliardos. E para aqueles que imaginam que a goliardia é coisa do passado, aqui vai um exemplo de poema semelhante aos que os goliardos faziam, um poema de conteúdo crítico camuflado pela linguagem poética com que é elaborado, pela melodia "sacra" e pelo "coro de missa" que o acompanham:
"Pai, afasta de mim esse cálice,
Pai, afasta de mim esse cálice,
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue.
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta.
De que me serve ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentiram, tanta força bruta
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado.
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada prá a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa.
De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta.
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade.
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça!"
(Chico Buarque/Gilberto Gil)
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS:
(1) FRANCO Jr., Hilário . O Feudalismo. 9a. edição, São Paulo : Brasiliense, 1991 - pp. 26 e 27
(2) idem - op. cit. p. 58
(3) ibidem- op. cit. p.59
(4) conforme ROLLAND, Jaques-Francis . Historama: a grande aventura do homem . Buenos Aires : Editorial Codex, 1972 - p. 114
(5) BURNS, Edward M. História da Civilização Ocidental. 25a. edição, Porto Alegre : Editora Globo, 1983 - p. 380
(6) _____, idem op. cit. - p. 380
(7) Spina, Sigismundo apud WOENSEL, Maurice van . Carmina Burana : Canções de Beuern. São Paulo : Ars Poética, 1994- p. 10
(8) CORREIA, Natália . Cantares dos trovadores galego-portugueses . Lisboa : Estampa, 1980 - p. 25
(9) SARAIVA, Antônio José & LOPES, Oscar . História da Literatura Portuguesa. 8a. edição, Porto : Porto Editora, 1975- p. 57
(10) WOENSEL, Maurice van - op. cit. - p. 17.Agradeço
e
RECOMENDO
Esta leitura 6"CARMINA BURANA"
é apenas parte da genial descrição da "Poesia dos Goliardos"
belamente postada no Portal Rosa Beloto,
a quem agradeço este "empréstimo"!
Pablo PicassoLi
Fontes:http://portalrosabeloto.sites.uol.com.br/site_rosa_beloto/19.htm
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