O programa traz também um bate-papo com  Benjamin Moser, o biógrafo que está apresentando a obra de Clarice  Lispector ao mundo. Moser conheceu a escritora quase por acaso.
Depois  de tentar aprender o idioma chinês, ele optou pelo português e acabou  descobrindo a literatura enigmática da autora de Perto do Coração  Selvagem.
Moser falou ao Entrelinhas sobre suas viagens à Ucrânia (país  natal da escritora brasileira, onde conheceu as circunstâncias  traumáticas de seu nascimento) e pelos outros países em que a Clarice  viveu.
CLARICE LISPECTOR:  
A PAIXÃO SEGUNDO G. H ? Benedito NUNES
 Benedito NUNES**
 Prof. do Departamento de Letras da UFAM Reproduzido de Revista Expressão. UFPI, Teresina, 2(1)77-90, jan.-jul/ 1995 
(crédito conforme o orientado no impresso)
A escolha deste assunto, "A Paixão Segundo G. H.",   obedece  ao interesse apaixonado por essa obra que há cerca de 3 anos me   levou  a coordenar para as Edition Archives da Maison de Angel Asturias,   de  Paris, sob o patrocínio da UNESCO, a edição crítica desse romance de    Clarice Lispector.
Por força de tal incumbência tomaria contacto com   o espólio da  escritora. A surpresa foi chocante: para os vinte e cinco   livros de  Clarice Lispector, só encontramos um original completo o   datiloscristo  da coletânea por ela própria organizada dos seus primeiros   contos,  escritos em 1940 a 1941, entre 15 e 16 anos de idade, inéditos   até  1979, quando foram editados postumamente sob o título de 
A Bela e a Fera. Excluída    essa parte incipiente, imatura, da obra, no sentido de instância    seminal do que foi realizado logo depois, pouco ou quase nada resta dos    originais de Clarice Lispector.
Dividido, ainda hoje, ém dois acervos distintos,   um público,  acessível à consulta, e outro privado, pertencente aos   herdeiros, o  espólio literário de Clarice Lispector tem toda a aparência   de uma  coleção fortuita de despojos, pois o que aí prepondera, em   contrastes  com o datiloscrito antes referido ? peça solitária e mesmo    excepcional, dadas as correções de próprio punho da escritora que dele  constam ? são originais manuscritos, ou incompletos, como os de 
A Hora da Estrela e 
Água Viva, ou em forma fragmentada, como aqueles com os quais Olga Borelli organizou os últimos escritos postumamente editados ? 
Um So-pro de Vida (Pulsações) e os contos 
Um Dia a Menos e 
A Bela e a Fera ou a Fenda Grande Demais, incluidos na coletânea de 1979, já citada, que tomou aquele nome, 
A Bela e a Fera.Nada, nem sinal havia do objeto específico de minha busca ? os originais de 
A Paixão. Pode-se    imaginar o problema decorrente desse vazio Como se justificaria a    realização de uma edição crítica do romance sem a reprodução do seu    texto original, manuscrito ou datiloscrito? Mas segundo critério do    editor 
A Paixão não poderia, pela sua importância, ficar excluída   da coleção Archives dos livros de ficção representativos da literatura    latino-americana. E, a exceção quebrando a regra, a obra acabou  saindo   assim mesmo ? privada da matriz de seu aparato crítico, embora    compensada a falha pela inclusão no mesmo volume do 
facsímile do original do conto ? 
A Bela e a Fera ou 
Uma Feriada Grande Demais, obtido no Museu de Literatura (Casa Rui Barbosa) do 
Rio de Janeiro.O primeiro tópico a ser abordado nesta ocasião é a   importância do  texto que me apaixona: diremos quais nos parecem ser as   razões da  insistência do editor em publicá-lo na sua coleção   internacional,  subsidiada mediante convênio com vários países da América   Latina
O segundo e último tópico é o processo de escrita   de Clarice  Lispector, em íntima relação com a ascendência que o   trabalho da  linguagem tomou em sua obra, de modo particular naquele   texto  passional e apaixonante ? processo de escrita que, juntando forças    como o acaso e a negligência, teria contri-huido para o estado final de    pobreza do espólio da romancista.
A Paixão Segundo G. H. (1964) é o livro   maior de Clarice  Lispector ? maior no sentido de ser aquele que amplia   os aspectos  singulares de sua obra, extremando as possibilidades que   nela se  concretizam ? mas também um dos textos mais originais da moderna    ficção brasileira. Tal como uma lente de aumento reveledora abre para o    leitor e para o crítico, pelo poder de envolvimento da narrativa, a    fronteira entre o real e o imaginário, entre linguagem e mundo, por onde    jorra a fonte poética de toda ficção. Essa, a razão mais geral que    justificava a insistência de editor.
De um lado 
A Paixão Segundo G. H. condensa a linha interiorizada de criação ficcional que Clarice Lispector adotou desde o seu primeiro romance, 
Perto do Coração Selvagem (1944),    linha que alcança naquele o seu ponto de viragem, por outro é um    romance singular, não tanto em função da sua história quanto pela    introspecção exacerbada, que condiciona o ato de contá-la, transformado    em empate da narradora com a linguagem, levada a domínios que    ultrapassam os limites da expressão verbal. Da singularidade do romance ?    a segunda e definitiva razão ? trataremos daqui por diante.
O embate da narradora com a linguagem acompanha a   tumultuosa  narrativa de um êxtase. Quem a faz, sob o efeito da   fascinação que  sobre ela exerce uma barata doméstica, é G. H.,   personagem solitária  designada pelas iniciais de seu nome ignorado.
Mulher de vida ordenada, independente, mundana,   pratica escultura e  mora num apartamento de cobertura ? localização   privilegiada no topo  da hierarquia social. Certa manhã, entra no quarto   da empregada:  arrumaria na ausência de sua ocupante, que se despedira,   esse cubículo  desolado, ? mal cabem ali guarda-roupa e cama ? onde   ingressa pela  primeira vez como se penetrasse em casa estranha, tanto se diferençava  aquele quarto dos cômodos restantes.
É lá que vê o inseto; vê-lo emergir do fundo do   guarda-roupa;  bruscamente bate em cima dele a porta do móvel; e olha sua   vítima  inerme, esmagada, antes de dar-lhe o golpe de misericórdia:
"Era uma cara sem contorno. As antenas saiam   em bigodes do  lado da boca. A boca marrom era bem delineada. Os finos e   longos  bigodes mexiam-se lentos e secos. Seus olhos  pretos facetados   olhavam. Era uma barata tão velha como um peixe  fossilizado. Era uma barata tão velha como salamandras e quimeras e  grifos e leviatãs."
Sob o fascínio repugnante da barata que mata, num   assomo de cólera,  tomada por um espasmo de náusea seca ? ela acabará   pondo na boca a  massa branca extravasada do inseto -G. H. experimenta o   arrebatamento  de prolongado êxtase A desorganização de sua existência    arrumada, o transtorno de sua individualidade própria, conseqüente a    esse estado de alheamento, a dificuldade para voltar a si a mesma e a    impotência da personagem para narrar o sucedido ? eis todo o enredo    desse romance, se é que de enredo ainda se pode falar.
Passional na medida das paixões rudimentares e vertiginosas que descreve , 
A Paixão Segundo G. H. é    patético na sua forma de expressão intensificada, calorosa, que    emocionalmente se alteia seguindo o rastilho de imagens ardentes,    encadeadas a idéias abstratas durante uma narração estirada, monólogo    quase diálogo, graças ao expediente retórico, ao mesmo tempo signo de    insuportável solidão da narradora-personagem, que finge segurai a mão de  alguém enquanto escreve
"Ali estava eu boquiaberta e ofendida e   recuada diante do ser  empoeirado que me olhava. Toma o que eu vi: pois o   que eu via com um  constrangimento tão penoso e tão espantado e tão   inocente era a vida  me olhando." 
"Como chamar de outro modo aquilo horrível e   cru,  matéria-prima e plasma seco, que ali estava, enquanto eu recuava   para  dentro de mim em náusea seca, eu caindo séculos e séculos dentro de    uma lama, e nem sequer lama já seca mas lama ainda úmida e ainda viva,    era uma lama onde remexiam com lentidão insuportável as raizes de minha    identidade "
O seco, o 
úmido, o 
árido, estão   entre as  qualidades sensíveis primárias que fornecem a gama das imagens    descritivas dos estados de alheamento por que passa G. H , saindo do    recesso de sua subjetividade para o elemento impessoal, anônimo e    estranho da coisa, da matéria viva, com que se identifica numa espécie    de união estática. Estágios de um percurso de dor e alegria, de amor e    ódio. chegando ao Inferno e ao Paraíso, ao sofrimento e à glória.  Nessas   paragens escatológicas, liberação e condenação, salvação e  perda, se   entremisturam para a personagem-narradora, privada, como se  morta   estivesse, de sua organização humana:
"Se soubesses da solidão desses meus primeiros   passos. Não se  parecia com a solidão de uma pessoa. Era como se eu já   tivesse  morrido e desse sozinha os primeiros passos em outra vida E era  como a   solidão chamasse de glória, e também eu sabia que era uma  glória, e   tremia toda nessa glória divina primária que não só eu não  compreendia,   como profundamente não a queria. "
A glória se associa à "larga vida do silêncio" que também fosse a entrada num deserto:
?Eu entrava num deserto como nunca estive Era   um deserto que  me chamava como um cântico monótono e remoto chama. E na   minha grande  dilatação, eu estava no deserto. Como te explicar? "
 
Mas nesse deserto da alma antecipa a nova   realidade onde ela chega,  o nada onde ela entra, que tem a ardência do   inferno e o refrigério  do paraíso:
?Foi assim que fui dando os primeiros passos   no nada Meus  primei ms passos hesitantes em direção à Vida e abandonando   a minha  vida. O pê pisou no ar. e entrei no paraíso e no inferno no núcleo "
A generalidade do sacrifício da 
paixão de 
G. H., pois que ela encontra em si "a 
mulher de todas as mulheres?, dá    ao seu percurso o sentimento de uma peregrinação da alma, à  semelhança   de um intinerário espiritual, como nos escritos místicos de  natureza   confessional, mais freqüentes dentro da tradição cristã e  menos dentro   da hebraica, inspirados na interpretação alegórica dos  textos sagrados.   Estaríamos diante de um romance alegórico?  Mais  justificada parece a pergunta quando se constata, seja pela entrada e  saída, de aridez,   secura, solidão e silencio, seja pela contraditória  visão do que é   inefável (nada, gloria, realidade primária), o  "contexto místico? do   intinerário sacrificial de G.H. Pois, como não  associar os freqüentes   oxímoros ? "horrível mal estar feliz", "prazer  infernal" ? os paradoxos e   contradições com uma 
primary languagem of mysticism de que fala Charles Morris? E como não pensar nas 
entradas de Sta. Tereza DÁvila. na 
quietude do silêncio e no deserto de Mister Echardt?
Não sena descabido, portanto, que se repetisse   para o leitor  de hoje (nesta introdução de A Paixão Segundo G.H.,) a   advertência de  Dante ao Can Grande de Scala a propósito da Divina   Comédia: "
(?) devemos saber que esta obra não tem sentido simples, mas. ao contrário, pode-se até chamá-la de polisse mica,    isto é, que tem mais de um significado: pois o primeiro é o que se  tem   da própria letra e o outro o que tira seu sentido daquilo que se  diz   pela letra. O primeiro chama-se literal, o segundo, alegórico ou  místico   "
Mas se podemos afirmar que a obra de Clarice   Lispector é de um  polissemia perturbadora, o que nela "tira seu sentido   daquilo que se  diz pela letra", não pertence, como na 
Divina Comédia, à    escala figurai do alegórico. Como se transitasse entre escombros da    visão danteana, a simbologia religiosa utilizada por G. H não é mais,    apesar da inflexão teológica de seu longo solilóquio, no tom    confessional de uma penitente, a ilustração sensível do destino   sobrenatural da alma humana Infer
 no  e paraíso são o clímax patético da alma, o auge de um autoconhecimento  vertiginoso enquanto descida no abismo da interioridade.
Se 
A Paixão Segundo G H. faz jus à   classificação de ro  mance alegórico, sê-lo-á não no sentido medieval,   mas no barroco de  figuração multíplice de significação inexaurível, ou,   como precisou o  pensador judeu Gershom Scholem, retomando o conceito de   alegoria de  Walter Benjamin, de uma 
"rede  infinita de significados e   correlações em que tudo pode se  transformar na representação de tudo,   mas sempre dentro dos limites da  linguagem e da expressão". Devido à   multivalência das imagens e  conceitos que o relato do estado de êxtase   une, tudo nesse texto é um  cerrado jogo de aparências sob o império de   penosa e perversa  ambigüidade.
O sacrifício da identidade pessoal de G.H., "a   perda de tudo o que  se possa perder e ainda ser" aparenta-se à crise   violenta que anuncia  uma conversão religiosa. Mas despojada de si mesma,   mergulhando num  momento de existência abismal que elimina o "individual   supérfluo?,  ela se anula como pessoa, nivelada à barata Infringindo a   interdição  hebraica de tocar no imundo, no impuro, no repugnante, também    grotesco, assalta-a o acerbo sentimento da falta cometida, sem que    rejeite o Pecado. E quando, afinal, comunga a massa branca do inseto    transformado em Hóstia, esse ato assume a aparência de uma profanação,    do nefando crime de sacrilégio.
A natureza crua da vida a que ela acede é   ambígua: domínio do  orgânico, do biológico, anterior à consciência, e   também dimensão do 
sagrado, interdito e acessível, ameaçador e apaziguador, potente e inativo E ambíguo é o amor que o êxtase provoca: oposto ao 
ágape do cristianismo, impulsivo como o 
eros pagão, esse amor tende ao arrebatamento orgiástico e ao 
entusiasmo, precursor da transfusão dos coribantes no seio da divindade
Enfim, oscilando entre tudo e nada, do   esvaziamento do Eu à  plenitude vazia, a experiência crucial de G H.,   contraditória e  paradoxal, emudece-lhe o entendimento e tolhe a sua   palavra:
"Aquilo que eu chamava de nada 
era no entanto   tão colado a mim  que me era., eu?
 e portanto se tornava invisível como   eu me era  invisível,
 e tornava-se um nada."
"A vida semeée eu não entendo o que digo."
Subvertida à realidade comum, revirado o mundo, o não humano torna-se o fundo insondável do que é humano.
Porém alertamos para o fato de que a visão   transtornante da  personagem-narradora é inseparável do ato de contá-la,   como tentativa  sua para reapossar-se do momento de iluminação estática,   anterior ao  começo da narração, e que a desapossou de si mesma. Só   enquanto  lembrança, na ordem sucessiva do discurso, poderá a narrativa    substituir a subitaneidade do transe visionário. E, restituindo-o,    devolver também ao novo Eu da enunciação em que o papel de narradora    investe G H. , a identidade cuja perda constitui o cerne de sua    história. Dividida entre a perda e a reconquista, entre o presente e o    passado, o ato de narrar, dubitativo, voz indecisa de quem o perfaz,  sem   nenhuma certeza quanto ao que viveu e lhe terá sucedido, é um  "relato   dificultoso" e será menos um relato que uma construção do  acontecimento:
" Vou criar o que me aconteceu. Só porque   viver não é  relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida   E sem  mentir. Criar sim. mentir não. Criar não é imaginação. é correr  o grande risco de se ter a   realidade. Entender é uma criação, meu  único modo. Precisarei com   esforço traduzir sinais de telégrafo ?  traduzir o desconhecido para uma   língua que desconheço e sem sequer  entender para que valem os sinais   (?).Até criar a verdade do que me  aconteceu. Ah, será mais um grafismo   que uma escrita pois tento mais  uma reprodução do que uma expressão
Viver não é relatável: o momento da vivência,   instantâneo, escapa à  palavra que expressa. Viver não é vivível : a   narrativa, enlace  discursivo de significações, recria aquilo que se quis   reproduzir. E  como reproduzir o instante do êxtase, mudo, sem palavras,   que remonta a  um mundo não verbalizável?
À simples experiência imediata faltaria a palavra   que lhe dá  sentido, e a pura entrega ao imaginário cairia numa   verbalização  irredutível à experiência. A primeira nos fecharia num   mundo  pré-verbal, mentindo à linguagem; a segunda nos fecharia numa    linguagem sem mundo, mentindo à realidade Criar consiste na infindável    remissão do imaginário ao real e do real ao imaginário, como movimento    da escrita, que traduz "O desconhecido para uma língua que    desconheço?"
Em 
A Paixão Segundo G.H., a consciência da   linguagem  enquanto simbolização do que não pode ser inteiramente   verbalizado,  incorpora-se à ficção regida pelo movimento da escrita, que   arrasta  consigo os vestígios do mundo pré-verbal e as marcas   "arqueológicas"  do imaginário até onde desceu. G. H. tenta dizer a coisa   sem nome,  descortinada no instante do êxtase, e que entremostra no   silêncio  intervalar das palavras. Ivlas o que ela enuncia não pode   deixar de  simbolizar o substrato inconsciente da narração que, matéria   comum aos  sonhos e aos mitos, sobe das camadas profundas do   imaginário que  constituem o sub-solo da ficção. O "arqueológico" da   ficção alimenta o  que há de sacral e escatológico na possível alegoria.
É dramática a consciência da linguagem que   acompanha o esforço da  narradora para recuperar o transe visionário que a   alienou. Daí  tornar-se a narrativa o espaço agônico de quem narra e do   sentido de  sua narração ? o espaço onde a narrativa erra, isto é, onde   ela se  busca, buscando o sentido do real, que só se atinge quando a   linguagem  fracassa em dizê-lo:
"A linguagem é o meu esforço humano. Por   destino tenho que ir  buscar e por destino volto com as mãos vazias Mas ?   volto com o  indizível. O indizível só me poderá ser dado através do   fracasso de  minha linguagem. Só quando falha a construção, ê que obtenho   o que ela  não conseguiu."
 Do processo da linguagem resulta a ficção   erradia, "mais um  grafismo do que uma escrita?" No entanto,   considere-se que a visão de  G. H , como se pode perceber pelo   contraponto meditativo anterior  acerca de seu "relato dificultoso",   nunca se manifesta  independentemente do pensamento conceptual que   indaga, que interroga,  que exclama, que especula, comentando e   interpretando a iluminação  estática, recuperada como lembrança, conforme   ressalta a cadeia  reflexiva dos temas ? Deus, arte, linguagem, beleza,   entre muitos  outros, que se estende de ponta a ponta do romance. A   narração vira  "meditação visual", e esta constitui um grafismo, uma   criptografia ?  escrita de fascinação, com algo de luminoso, perpertuando   a sedução da  barata esmagada.
Dir-se-ia que a narrativa,
 com o que tem de numinoso, trás a fluxo, 
 exacerbada, a introspecção, tudo o   ,que escrever 
implica de ameaçador e  de metamórfico antes de ser   mística,
 a visão de G. H. pertence ao  misticismo da escrita.
É justamente a ficção erradia, derivada desse misticismo, o ponto de viragem da obra de Clarice Lispector, iniciada em 
Perto do Coração Selvagem, sob a perspectiva da instropecção que culmina no êxtase de G. H
À época em que esse primeiro romance foi   publicado, essa  perspectiva representou um desvio estético relativamente   aos padrões  dominantes da prosa modernista em 1922 e da ficção de   recorte  neo-naturalista dos anos trinta, desvio que vinculou a autora,   por  afinidade, a Mareei Proust, Virginia Woolf e James Joyce, os    fiecionistas da corrente da consciência ou da duração interior. A    culminância daquela perspectiva em 
A Paixão Segundo G. H. é o    transbordamento pletórico da dialética da experiência vivida ? a tensão    entre a intuição instantânea e a sua expressão verbal mediada pela   memória
, que naturalizou o desvio estético como força propulsiva da   ficção de Clarice Lispector.
A Paixão Segundo G. H., que extremou a consciência da linguagem já manifesta, depois de 
Perto do Coração Selvagem, em O 
Lustre (1946), 
A Cidade Sitiada (1949) e 
A Maçã no Escuro (1961),    exacerbou esse desvio. Após o seu quinto romance, Clarice Lispector    infringirá o molde histórico da criação romanesca e as convenções    identificadoras da ficção em 
Água Viva (1974) e 
Um Sopro de Vida (1978).
O sinal inequívoco do ponto de viragem para esses   textos é o gesto  patético de G. H , que segura a mão de uma segunda   pessoa enquanto  está narrando, sem o que ela não poderia continuar o seu   "difícil  relato":
"Enquanto escrever e falar vou ter que fingir que alguém está segurando a minha mão
Sendo um expediente ficcional que amplia a dramaticidade danarrativa e  autentica o paroxismo da personagem, esse gesto dialogai dirigido a um 
tu localizado    na fímbria da narrativa, irrompe no solilóquio, como proposta de um    novo pacto com o leitor, considerado suporte ativo da elaboração    ficcional -partícipe ou colaborador ? que deverá continuá-la.
Por esse motivo. 
A Paixão Segundo G H., onde   vem culminar a  dialética da experiência vivida, favorece a compreensão   retrospectiva  da ficcionista Clarice Uspector e contribui também para   elucidá-la  prospectivamente. Dessa forma, a gênese do romance que é,   como  possibilidade, o horizonte na direção do qual ela se move desde o    início, está relacionado com o desenvolvimento de toda a sua obra.
Daí a relevância do fragmento como vestígio do instantâneo, que podemos surpreender no manuscrito incompleto de 
A Dela e a Fera ou 
Uma Ferida Grande Demais A    comparação do texto primitivo com o texto em sua forma definitiva    impressa revelaria a máxima proximidade entre o momento da elaboração e o    momento de composição na escrita narrativa de Clarice Lispector    Indelével, o momento da elaboração estampa-se na grafia tortuosa ?    enviezada algumas vezes, ocupando as margens do papel ou    desenvolvendo-se em linhas verticais ? do texto primitivo, também    invadido por anotações circunstanciais estranhas ao curso da narrativa ?    entre outras, o nome de um dentista a visitar ou o lembrete INPS    lançados em uma folha avulsa. Tortuosa grafia da escrita vertiginosa de    uma ficção erradia que culminou em 
A Paixão Segundo G. H.De certo modo uma ritualização dessa vertigem como "misticismo da  escrita" ? embate verbal com a experiência vivida, e, nesse sentido,  tentativa para narrar o que não é narrável, 
A Paixão Segundo G H. traz    a efervescência de seu momento de elaboração, concentrado no esforço    poético da linguagem para dizer o indizível, que o momento da  composição   calcinaria
"A linguagem é o meu esforço humano Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas ? volto com o indizível 
O    indizível só me poderá ser dado através do fracasso da minha  linguagem.   Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não  conseguiu.?Nessa auto-revelação que o texto maior de Clarice   Lispector parece  fazer de sua própria gênese, a falha da construção ?   vitória e  fracasso da linguagem ? subsistiria como fragmento.
Esta suposição, que não poderá ser posta à prova,   torna irreparável  a perda dos originais de uma narrativa que se   extremou na fixação do  instante.
Benedito NUNES* * Prof. do Departamento de Letras da UFAM 
Reproduzido de Revista Expressão. UFPI, Teresina, 2(1)77-90, jan.-jul/ 1995 (crédito conforme o orientado no impresso)
A escolha deste assunto, "A Paixão Segundo G. H.",   obedece  ao interesse apaixonado por essa obra que há cerca de 3 anos me   levou  a coordenar para as Edition Archives da Maison de Angel Asturias,   de  Paris, sob o patrocínio da UNESCO, a edição crítica desse romance de    Clarice Lispector.
Por força de tal incumbência tomaria contacto com   o espólio da  escritora. A surpresa foi chocante: para os vinte e cinco   livros de  Clarice Lispector, só encontramos um original completo o   datiloscristo  da coletânea por ela própria organizada dos seus primeiros   contos,  escritos em 1940 a 1941, entre 15 e 16 anos de idade, inéditos   até  1979, quando foram editados postumamente sob o título de 
A Bela e a Fera. Excluída    essa parte incipiente, imatura, da obra, no sentido de instância    seminal do que foi realizado logo depois, pouco ou quase nada resta dos    originais de Clarice Lispector.
Dividido, ainda hoje, ém dois acervos distintos,   um público,  acessível à consulta, e outro privado, pertencente aos   herdeiros, o  espólio literário de Clarice Lispector tem toda a aparência   de uma  coleção fortuita de despojos, pois o que aí prepondera, em   contrastes  com o datiloscrito antes referido ? peça solitária e mesmo    excepcional, dadas as correções de próprio punho da escritora que dele  constam ? são originais manuscritos, ou incompletos, como os de 
A Hora da Estrela e 
Água Viva, ou em forma fragmentada, como aqueles com os quais Olga Borelli organizou os últimos escritos postumamente editados ? 
Um So-pro de Vida (Pulsações) e os contos 
Um Dia a Menos e 
A Bela e a Fera ou a Fenda Grande Demais, incluidos na coletânea de 1979, já citada, que tomou aquele nome, 
A Bela e a Fera.Nada, nem sinal havia do objeto específico de minha busca ? os originais de 
A Paixão. Pode-se    imaginar o problema decorrente desse vazio Como se justificaria a    realização de uma edição crítica do romance sem a reprodução do seu    texto original, manuscrito ou datiloscrito? Mas segundo critério do    editor 
A Paixão não poderia, pela sua importância, ficar excluída   da coleção Archives dos livros de ficção representativos da literatura    latino-americana. E, a exceção quebrando a regra, a obra acabou  saindo   assim mesmo ? privada da matriz de seu aparato crítico, embora    compensada a falha pela inclusão no mesmo volume do 
facsímile do original do conto ? 
A Bela e a Fera ou 
Uma Feriada Grande Demais, obtido no Museu de Literatura (Casa Rui Barbosa) do 
Rio de Janeiro.O primeiro tópico a ser abordado nesta ocasião é a   importância do  texto que me apaixona: diremos quais nos parecem ser as   razões da  insistência do editor em publicá-lo na sua coleção   internacional,  subsidiada mediante convênio com vários países da América   Latina
O segundo e último tópico é o processo de escrita   de Clarice  Lispector, em íntima relação com a ascendência que o   trabalho da  linguagem tomou em sua obra, de modo particular naquele   texto  passional e apaixonante ? processo de escrita que, juntando forças    como o acaso e a negligência, teria contri-huido para o estado final de    pobreza do espólio da romancista.
A Paixão Segundo G. H. (1964) é o livro   maior de Clarice  Lispector ? maior no sentido de ser aquele que amplia   os aspectos  singulares de sua obra, extremando as possibilidades que   nela se  concretizam ? mas também um dos textos mais originais da moderna    ficção brasileira. Tal como uma lente de aumento reveledora abre para o    leitor e para o crítico, pelo poder de envolvimento da narrativa, a    fronteira entre o real e o imaginário, entre linguagem e mundo, por onde    jorra a fonte poética de toda ficção. Essa, a razão mais geral que    justificava a insistência de editor.
De um lado 
A Paixão Segundo G. H. condensa a linha interiorizada de criação ficcional que Clarice Lispector adotou desde o seu primeiro romance, 
Perto do Coração Selvagem (1944),    linha que alcança naquele o seu ponto de viragem, por outro é um    romance singular, não tanto em função da sua história quanto pela    introspecção exacerbada, que condiciona o ato de contá-la, transformado    em empate da narradora com a linguagem, levada a domínios que    ultrapassam os limites da expressão verbal. Da singularidade do romance ?    a segunda e definitiva razão ? trataremos daqui por diante.
O embate da narradora com a linguagem acompanha a   tumultuosa  narrativa de um êxtase. Quem a faz, sob o efeito da   fascinação que  sobre ela exerce uma barata doméstica, é G. H.,   personagem solitária  designada pelas iniciais de seu nome ignorado.
Mulher de vida ordenada, independente, mundana,   pratica escultura e  mora num apartamento de cobertura ? localização   privilegiada no topo  da hierarquia social. Certa manhã, entra no quarto   da empregada:  arrumaria na ausência de sua ocupante, que se despedira,   esse cubículo  desolado, ? mal cabem ali guarda-roupa e cama ? onde   ingressa pela  primeira vez como se penetrasse em casa estranha, tanto se diferençava  aquele quarto dos cômodos restantes.
É lá que vê o inseto; vê-lo emergir do fundo do   guarda-roupa;  bruscamente bate em cima dele a porta do móvel; e olha sua   vítima  inerme, esmagada, antes de dar-lhe o golpe de misericórdia:
"Era uma cara sem contorno. As antenas saiam   em bigodes do  lado da boca. A boca marrom era bem delineada. Os finos e   longos  bigodes mexiam-se lentos e secos. Seus olhos  pretos facetados   olhavam. Era uma barata tão velha como um peixe  fossilizado. Era uma   i)arata tão velha como salamandras e quimeras e  grifos e leviatãs."
Sob o fascínio repugnante da barata que mata, num   assomo de cólera,  tomada por um espasmo de náusea seca ? ela acabará   pondo na boca a  massa branca extravasada do inseto -G. H. experimenta o   arrebatamento  de prolongado êxtase A desorganização de sua existência
    arrumada, o transtorno de sua individualidade própria, conseqüente a    esse estado de alheamento, a dificuldade para voltar a si a mesma e a    impotência da personagem para narrar o sucedido ? eis todo o enredo    desse romance, se é que de enredo ainda se pode falar.
Passional na medida das paixões rudimentares e vertiginosas que descreve , 
A Paixão Segundo G. H. é    patético na sua forma de expressão intensificada, calorosa, que    emocionalmente se alteia seguindo o rastilho de imagens ardentes,    encadeadas a idéias abstratas durante uma narração estirada, monólogo    quase diálogo, graças ao expediente retórico, ao mesmo tempo signo de    insuportável solidão da narradora-personagem, que finge segurai a mão de  alguém enquanto escreve
"Ali estava eu boquiaberta e ofendida e   recuada diante do ser  empoeirado que me olhava. Toma o que eu vi: pois o   que eu via com um  constrangimento tão penoso e tão espantado e tão   inocente era a vida  me olhando."
"Como chamar de outro modo aquilo horrível e   cru,  matéria-prima e plasma seco, que ali estava, enquanto eu recuava   para  dentro de mim em náusea seca, eu caindo séculos e séculos dentro de    uma lama, e nem sequer lama já seca mas lama ainda úmida e ainda viva,    era uma lama onde remexiam com lentidão insuportável as raizes de minha    identidade "
O seco, o 
úmido, o 
árido, estão   entre as  qualidades sensíveis primárias que fornecem a gama das imagens    descritivas dos estados de alheamento por que passa G. H , saindo do    recesso de sua subjetividade para o elemento impessoal, anônimo e    estranho da coisa, da matéria viva, com que se identifica numa espécie    de união estática. Estágios de um percurso de dor e alegria, de amor e    ódio. chegando ao Inferno e ao Paraíso, ao sofrimento e à glória.  Nessas   paragens escatológicas, liberação e condenação, salvação e  perda, se   entremisturam para a personagem-narradora, privada, como se  morta   estivesse, de sua organização humana:
"Se soubesses da solidão desses meus primeiros   passos. Não se  parecia com a solidão de uma pessoa. Era como se eu já   tivesse  morrido e desse sozinha os primeiros passos em outra vida E era  como a   solidão chamasse de glória, e também eu sabia que era uma  glória, e   tremia toda nessa glória divina primária que não só eu não  compreendia,   como profundamente não a queria. "
A glória se associa à "larga vida do silêncio" que também fosse a entrada num deserto:
?Eu entrava num deserto como nunca estive Era   um deserto que  me chamava como um cântico monótono e remoto chama. E na   minha grande  dilatação, eu estava no deserto. Como te explicar? "
 
Mas nesse deserto da alma antecipa a nova   realidade onde ela chega,  o nada onde ela entra, que tem a ardência do   inferno e o refrigério  do paraíso:
?Foi assim que fui dando os primeiros passos   no nada .Meus  primeiros  passos hesitantes em direção à Vida e abandonando   a minha  vida. O pê pisou no ar. e entrei no paraíso e no inferno no núcleo "
A generalidade do sacrifício da 
paixão de 
G. H., pois que ela encontra em si "a 
mulher de todas as mulheres?, dá    ao seu percurso o sentimento de uma peregrinação da alma, à  semelhança   de um intinerário espiritual, como nos escritos místicos de  natureza   confessional, mais freqüentes dentro da tradição cristã e  menos dentro   da hebraica, inspirados na interpretação alegórica dos  textos sagrados.
Estaríamos
 diante de um romance alegórico? 
Mais  justificada parece a pergunta quando se constata, seja pela entrada e  saída, de aridez,   secura, solidão e silencio, seja pela contraditória  visão do que é   inefável (nada, gloria, realidade primária), o  "contexto místico? do   intinerário sacrificial de G.H. Pois, como não  associar os freqüentes   oxímoros ? "horrível mal estar feliz", "prazer  infernal" ? os paradoxos e   contradições com uma 
primary languagem of mysticism de que fala Charles Morris? E como não pensar nas 
entradas de Sta. Tereza DÁvila. na 
quietude do silêncio e no deserto de Mister Echardt?
Não sena descabido, portanto, que se repetisse   para o leitor  de hoje (nesta introdução de A Paixão Segundo G.H.,) a   advertência de  Dante ao Can Grande de Scala a propósito da Divina   Comédia: "
(?) devemos saber que esta obra não tem sentido simples, mas. ao contrário, pode-se até chamá-la de polisse mica,    isto é, que tem mais de um significado: pois o primeiro é o que se  tem   da própria letra e o outro o que tira seu sentido daquilo que se  diz   pela letra. O primeiro chama-se literal, o segundo, alegórico ou  místico   "
Mas se podemos afirmar que a obra de Clarice   Lispector é de um  polissemia perturbadora, o que nela "tira seu sentido   daquilo que se  diz pela letra", não pertence, como na 
Divina Comédia, à    escala figurai do alegórico. Como se transitasse entre escombros da    visão danteana, a simbologia religiosa utilizada por G. H não é mais,    apesar da inflexão teológica de seu longo solilóquio, no tom    confessional de uma penitente, a ilustração sensível do destino 
  sobrenatural da alma humana Infer
 no  e paraíso são o clímax patético da alma, o auge de um autoconhecimento  vertiginoso enquanto descida no abismo da interioridade.
Se 
A Paixão Segundo G H. faz jus à   classificação de ro  mance alegórico, sê-lo-á não no sentido medieval,   mas no barroco de  figuração multíplice de significação inexaurível, ou,   como precisou o  pensador judeu Gershom Scholem, retomando o conceito de   alegoria de  Walter
 Benjamin, de uma 
"rede  infinita de significados e   correlações em que tudo pode se  transformar na representação de tudo,   mas sempre dentro dos limites da  linguagem e da expressão". Devido à   multivalência das imagens e  conceitos que o relato do estado de êxtase   une, tudo nesse texto é um  cerrado jogo de aparências sob o império de   penosa e perversa  ambigüidade.
O sacrifício da identidade pessoal de G.H., "a   perda de tudo o que  se possa perder e ainda ser" aparenta-se à crise   violenta que anuncia  uma conversão religiosa. Mas despojada de si mesma,   mergulhando num  momento de existência abismal que elimina o "individual   supérfluo?,  ela se anula como pessoa, nivelada à barata Infringindo a   interdição  hebraica de tocar no imundo, no impuro, no repugnante, também    grotesco, assalta-a o acerbo sentimento da falta cometida, sem que    rejeite o Pecado. E quando, afinal, comunga a massa branca do inseto    transformado em Hóstia, esse ato assume a aparência de uma profanação,    do nefando crime de sacrilégio.
A natureza crua da vida a que ela acede é   ambígua: domínio do  orgânico, do biológico, anterior à consciência, e   também dimensão do 
sagrado, interdito e acessível, ameaçador e apaziguador, potente e inativo E ambíguo é o amor que o êxtase provoca: oposto ao 
ágape do cristianismo, impulsivo como o 
eros pagão, esse amor tende ao arrebatamento orgiástico e ao 
entusiasmo, precursor da transfusão dos coribantes no seio da divindade
Enfim, oscilando entre tudo e nada, do   esvaziamento do Eu à  plenitude vazia, a experiência crucial de G H.,   contraditória e  paradoxal, emudece-lhe o entendimento e tolhe a sua   palavra:
"Aquilo que eu chamava de nada
 era no entanto   tão colado a mim  que me era., eu?
 e portanto se tornava invisível como   eu me era  invisível,
 e tornava-se um nada."
"A vida semeée
 eu não entendo o que digo."
Subvertida à realidade comum, revirado o mundo,
 o não humano torna-se o fundo insondável do que é humano.
Porém alertamos para o fato de que a visão   transtornante da  personagem-narradora é inseparável do ato de contá-la,   como tentativa  sua para reapossar-se do momento de iluminação estática,   anterior ao  começo da narração, e que a desapossou de si mesma. Só   enquanto  lembrança, na ordem sucessiva do discurso, poderá a narrativa    substituir a subitaneidade do transe visionário. E, restituindo-o,    devolver também ao novo Eu da enunciação em que o papel de narradora    investe G H. , a identidade cuja perda constitui o cerne de sua    história. Dividida entre a perda e a reconquista, entre o presente e o    passado, o ato de narrar, dubitativo, voz indecisa de quem o perfaz,  sem   nenhuma certeza quanto ao que viveu e lhe terá sucedido, é um  "relato   dificultoso" e será menos um relato que uma construção do  acontecimento:
" Vou criar o que me aconteceu. Só porque   viver não é  relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida   E sem  mentir. Criar sim. mentir não. Criar não é imaginação. é correr  o grande risco de se ter a   realidade. Entender é uma criação, meu  único modo. Precisarei com   esforço traduzir sinais de telégrafo ?  traduzir o desconhecido para uma   língua que desconheço e sem sequer  entender para que valem os sinais   (?).Até criar a verdade do que me  aconteceu. Ah, será mais um grafismo   que uma escrita pois tento mais  uma reprodução do que uma expressão
Viver não é relatável:
 o momento da vivência,   instantâneo, 
escapa à  palavra que expressa. Viver não é vivível :
a   narrativa, enlace  discursivo de significações, recria aquilo que se quis   reproduzir. E  como reproduzir o instante do êxtase, mudo, sem palavras,   que remonta a  um mundo não verbalizável?
À simples experiência imediata faltaria a palavra   que lhe dá  sentido, e a pura entrega ao imaginário cairia numa   verbalização  irredutível à experiência. A primeira nos fecharia num   mundo  pré-verbal, mentindo à linguagem; a segunda nos fecharia numa    linguagem sem mundo, mentindo à realidade Criar consiste na infindável    remissão do imaginário ao real e do real ao imaginário, como movimento    da escrita, que traduz "O desconhecido para uma língua que    desconheço?"
Em 
A Paixão Segundo G.H., a consciência da   linguagem  enquanto simbolização do que não pode ser inteiramente   verbalizado,  incorpora-se à ficção regida pelo movimento da escrita, que   arrasta  consigo os vestígios do mundo pré-verbal e as marcas   "arqueológicas"  do imaginário até onde desceu. G. H. tenta dizer a coisa   sem nome,  descortinada no instante do êxtase, e que entremostra no   silêncio  intervalar das palavras. Ivlas o que ela enuncia não pode   deixar de  simbolizar o substrato inconsciente da narração que, matéria   comum aos  sonhos e aos mitos, sobe das camadas profundas do   imaginário que  constituem o sub-solo da ficção.
O "arqueológico"
 da   ficção alimenta o  que há de sacral 
e escatológico na possível alegoria.
É dramática a consciência da linguagem que   acompanha o esforço da  narradora para recuperar o transe visionário que a   alienou. Daí  tornar-se a narrativa o espaço agônico de quem narra e do   sentido de  sua narração ? o espaço onde a narrativa erra, isto é, onde   ela se  busca, buscando o sentido do real, que só se atinge quando a   linguagem  fracassa em dizê-lo:
"A linguagem é o meu esforço humano. Por   destino tenho que ir  buscar e por destino volto com as mãos vazias Mas ?   volto com o  indizível. O indizível só me poderá ser dado através do   fracasso de  minha linguagem. Só quando falha a construção, ê que obtenho   o que ela  não conseguiu."
 Do processo da linguagem resulta a ficção   erradia, "mais um  grafismo do que uma escrita?" No entanto,   considere-se que a visão de  G. H , como se pode perceber pelo   contraponto meditativo anterior  acerca de seu "relato dificultoso",   nunca se manifesta  independentemente do pensamento conceptual que   indaga, que interroga,  que exclama, que especula, comentando e   interpretando a iluminação  estática, recuperada como lembrança, conforme   ressalta a cadeia  reflexiva dos temas ? Deus, arte, linguagem, beleza,   entre muitos  outros, que se estende de ponta a ponta do romance. A   narração vira  "meditação visual", e esta constitui um grafismo, uma   criptografia ?  escrita de fascinação, com algo de luminoso, perpertuando   a sedução da  barata esmagada
Dir-se-ia que a narrativa, com o que tem de numinoso, trás a fluxo,  exacerbada, a introspecção, tudo o   ,que escrever implica de ameaçador e  de metamórfico Antes de ser   mística, a visão de G. H. pertence ao  misticismo da escrita.
É justamente a ficção erradia, derivada desse misticismo, o ponto de viragem da obra de Clarice Lispector, iniciada em 
Perto do Coração Selvagem, sob a perspectiva da instropecção que culmina no êxtase de G. H
À época em que esse primeiro romance foi   publicado, essa  perspectiva representou um desvio estético relativamente   aos padrões  dominantes da prosa modernista em 1922 e da ficção de   recorte  neo-naturalista dos anos trinta, desvio que vinculou a autora,   por  afinidade, a Mareei Proust, Virginia Woolf e James Joyce, os    fiecionistas da corrente da consciência ou da duração interior.
A    culminância daquela perspectiva em 
A Paixão Segundo G. H. é o    transbordamento pletórico da dialética da experiência vivida ? a tensão    entre a intuição instantânea e a sua expressão verbal mediada pela   memória, que naturalizou o desvio estético como força propulsiva da   ficção de Clarice Lispector.
A Paixão Segundo G. H., que extremou a consciência da linguagem já manifesta, depois de 
Perto do Coração Selvagem, em O 
Lustre (1946), 
A Cidade Sitiada (1949) e 
A Maçã no Escuro (1961),    exacerbou esse desvio. Após o seu quinto romance, Clarice Lispector    infringirá o molde histórico da criação romanesca e as convenções    identificadoras da ficção em 
Água Viva (1974) e 
Um Sopro de Vida (1978).
O sinal inequívoco do ponto de viragem para esses   textos é o gesto  patético de G. H , que segura a mão de uma segunda   pessoa enquanto  está narrando, sem o que ela não poderia continuar o seu   "difícil  relato":
"Enquanto escrever e falar vou ter que fingir que alguém está segurando a minha mão
Sendo um expediente ficcional que amplia a dramaticidade danarrativa e  autentica o paroxismo da personagem, esse gesto dialogai dirigido a um 
tu localizado    na fímbria da narrativa, irrompe no solilóquio, como proposta de um    novo pacto com o leitor, considerado suporte ativo da elaboração    ficcional -partícipe ou colaborador ? que deverá continuá-la.
Por esse motivo.
A Paixão Segundo G H., onde   vem culminar a  dialética da experiência vivida, favorece a compreensão   retrospectiva  da ficcionista Clarice Uspector e contribui também para   elucidá-la  prospectivamente. Dessa forma, a gênese do romance que é,   como  possibilidade, o horizonte na direção do qual ela se move desde o    início, está relacionado com o desenvolvimento de toda a sua obra.
Daí a relevância do fragmento como vestígio do instantâneo, que podemos surpreender no manuscrito incompleto de 
A Dela e a Fera ou 
Uma Ferida Grande Demais A    comparação do texto primitivo com o texto em sua forma definitiva    impressa revelaria a máxima proximidade entre o momento da elaboração e o    momento de composição na escrita narrativa de Clarice Lispector    Indelével, o momento da elaboração estampa-se na grafia tortuosa ?    enviezada algumas vezes, ocupando as margens do papel ou    desenvolvendo-se em linhas verticais ? do texto primitivo, também    invadido por anotações circunstanciais estranhas ao curso da narrativa ?    entre outras, o nome de um dentista a visitar ou o lembrete INPS    lançados em uma folha avulsa. Tortuosa grafia da escrita vertiginosa de    uma ficção erradia que culminou em 
A Paixão Segundo G. H.De certo modo uma ritualização dessa vertigem como "misticismo da  escrita" ? embate verbal com a experiência vivida, e, nesse sentido,  tentativa para narrar o que não é narrável, 
A Paixão Segundo G H. traz    a efervescência de seu momento de elaboração, concentrado no esforço    poético da linguagem para dizer o indizível, que o momento da  composição   calcinaria
"A linguagem é o meu esforço humano Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas ? volto com o indizível 
O    indizível só me poderá ser dado através do fracasso da minha  linguagem.   Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não  conseguiu.?Nessa auto-revelação que o texto maior de Clarice   Lispector parece  fazer de sua própria gênese, a falha da construção ?   vitória e  fracasso da linguagem ? subsistiria como fragmento.
Esta suposição,
 que não poderá ser posta à prova, 
  torna irreparável  a perda dos originais 
de uma narrativa que se   extremou
 na fixação do  instante.