Cultura
CRÍTICA DO LIVRO “O HOMEM É UM GRANDE FAISÃO NO MUNDO”, DE HERTA MÜLLER
Nascida em 1953, na Romênia, a escritora, poeta e ensaísta Herta Müller ainda jovem foi perseguida pelo governo de Nicolae Ceausescu ao recusar-se a colaborar com o serviço secreto. Filha de um integrante das SS, as tropas de elite dos nazistas, foi presa e torturada. A mãe, uma camponesa de origem simples, foi deportada para um campo de concentração. Assim, em 1987, precisou mudar-se para a Alemanha, onde vive até hoje. Dado esse contexto de sofrimento e contradições, em suas obras, Muller, com uma linguagem altamente poética, descreve experiências de vítimas da ditadura. Seus livros são permeados pelo tom político e abordam principalmente os sentimentos gerados por um governo opressivo. Em 2009, ganhou o Nobel de Literatura por "a densidade da sua poesia e a franqueza da sua prosa retratarem o universo dos desapossados". Em “O homem é um grande faisão no mundo” (1986), publicado recentemente pela Companhia das Letras, Herta Muller faz um relato duro sobre sobreviventes da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) em uma aldeia da Romênia, na década de 1980, em pleno período ditatorial.
Faisão
Para as personagens, o tempo parece não passar. Windisch, o guarda-noturno, diariamente carrega sacos de farinha até o moinho e quer deixar o vilarejo, rumo à Alemanha. A vida do guarda é contar os dias e as horas: “Toda manhã, ao percorrer completamente só a rua que conduz ao moinho, Windisch conta o dia. Diante do monumento ao soldado conta os anos. Junto ao primeiro choupo, no ponto onde a bicicleta passa pela mesma valeta de sempre, conta os dias. E ao entardecer, quando fecha o moinho, Windisch conta os anos e os dias mais uma vez”. Gerando inveja, Windisch obtém o passaporte, porém, sair da aldeia é não é algo simples. Resignado, prefere ficar. Assim, ele é quem evoca o provérbio sobre o faisão que intitula o livro. Os faisões são aves medrosas, de asas curtas, por outro lado, são vistosos. Já as fêmeas, discretas, têm porte menor. Tais diferenças se diferenciam nos ataques dos inimigos: chamativo, o macho atrai para si o perigo, enquanto a fêmea consegue fugir com os filhotes.
Assim sendo, Amalie, filha de Windisch, se torna moeda de troca para que a família consiga fugir para o Ocidente. Ao mesmo tempo em que coloca a filha nessa situação, ele também sofre e sente pelas humilhações que ela passa. Contudo, é recorrente ao longo da obra a desvalorização por parte de Windisch por sua mulher (personagem sem nome). Ele a violenta tanto de maneira física como emocional. Aqui, a violência é uma constante no povoado de Windisch e as crianças desde cedo aprendem a conviver com a maldade: matam sapos, lagartos, filhotes de aves que ainda não sabem voar. Mais crescidos, esfolam bodes vivos. Nesse mundo cruel, a corrupção e o medo norteiam vidas despedaçadas.
Objetividade
Os capítulos de “O homem é um grande faisão no mundo” são objetivos e sucintos, em poucos casos ultrapassam quatro páginas. Müller busca a economia verbal, procura o simples para decifrar algo muito complexo. No estro de Herta, ganham forma as lutas entre homens e mulheres, as desconfianças e traições em relações amorosas marcadas por falta de comunicação. Ficam evidentes a impossibilidade do amor, o trabalho explorado, a falta de ética em instituições como a Igreja e a polícia. Tudo sob a égide da guerra e da ditadura. Entretanto, no capítulo “No meio dos túmulos”, o amor ocorre, pois Windisch e sua esposa choravam os namorados mortos: “A mosca pousa na lágrima da mulher de Windisch e voa com as asas molhadas”. Já no capítulo “Olhos sem o rosto”, Windisch sofre a dor de saber dos sacrifícios da filha em troca do passaporte para a família fugir: “Uma macieira come as próprias maçãs”.
“O homem é um grande faisão no mundo” é um livro sobre sofrimento, mas é bastante poético. É uma obra recheada de imagens com precisas descrições. A obra versa acerca de política, exílio, dor, morte, saudade, solidão e, sobretudo, amor. A proposta narrativa da novela tem que ser analisada aos poucos e ameaça, a todo tempo, dissolver-se nas lindas imagens poéticas criadas por Herta Müller. O lirismo dilacerante dessa obra, que atinge o leitor como um soco no estômago, está presente, também, no português da ótima tradução de Tércio Redondo. Em suma, esse pequeno relato de frases objetivas não é uma leitura simples. Ao contrário, é uma pulsante obra social em que imagens poéticas traduzem o vazio de vidas marcadas pela guerra.
Fontes: Ricardo Salvalaio, Cia das Letras, Gazeta do Povo.
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