Cultura
LICENÇA PARA CONTAR: SARAH VERVLOET
Sarah Vervloet nasceu em Vila Velha, no Espírito Santo, em 1989. É graduada em Letras-Português pela UFES e atualmente cursa o Mestrado em Letras/ Estudos Literários na mesma universidade. É professora e também escreve irregularmente. Foi contemplada em um concurso de Literatura da Secretaria de Cultura do Espírito Santo, na categoria contista estreante e seu livro está no forno. E-mail:[email protected] e Blog: http://chadechama.blogspot.com.br. Confira, abaixo, o conto “Momento de ar”:
MOMENTO DE AR
Meus dois longos anos não duraram tanto como estes minutos cheios de persistência de minha parte. É, porque viver em águas não quer dizer nada, disseram-me uma vez. Sempre me orgulhei do oceano por causa das ondas e do surf. Sou especialista nesses dois, mas sem prancha! Um dia me disseram que isso, ah, isso nem era muita coisa. Que o céu é muito maior que o mar. Mas os dois são azuis, oras. Aliás, eu sempre achei que o céu fosse mero reflexo aquático. Como assim? Perguntaram-me uma vez. Reflexo oceânico: o mar é o que causa o céu. Sem mar não há céu. Sem água não há ar.
Só que isso me causou estranhamento a partir da segunda vez. Toda vez que eu chegava à crista da onda, me esticava todo para alcançar o céu. Poder sentir o céu, tocar o ar. Era como voar sem asas, com nadadeiras. Estranho mesmo são asas não poderem fazer nadar e nadadeiras não poderem fazer voar. Pensei em pássaros. Tiveabsoluta certeza de que, em toda comunidade de aves, ao menos uma andorinha compartilhava comigo a mesma dúvida pelo simples desejo de poder, um dia, nadar com asas.
Por mais que eu quisesse, jamais conseguiria respirar completamente aquele ar. Nunca, disseram-me novamente. E eu fiquei furioso de arrancar escamas. Se eu fosse ao menos uma tainha. Se eu fosse ao menos um peixe-pássaro. Eu seria uma aberração. Então, o problema seria outro. Fiquei pensando que pior do que a minha situação só mesmo a das algas-marinhas e a das estrelas-do-mar. Algas vivem presas às pedras ou às correntezas. As estrelas ficam boa parte do tempo lá no chão da areia. E nenhuma delas tem asas ou barbatanas. Umas coitadas.
Não há o que reclamar: em oito anos conheci águas mornas, frias, quentes e congeláveis. Isso já faz de mim um peixe de muitas experiências relevantes. Algumas marcas de anzóis das minhas batalhas contra varas de pescar. Mas numa rede eu nunca caí. Se tivesse me agarrado numa rede talvez eu sentisse por completo o cheiro do ar. E talvez nunca mais voltasse, disseram-me uma vez. Pior seria se eu não gostasse do ar. Mas eu hei de experimentar porque só dessa forma irei descobrir. E finalmente criei a mais forte das coragens, a mais incrível, a mais insensata, a mais extravagante. Passei sete marés cheias acumulando energia para conseguir realizar o sonho mais sonhado de todos. Esperei passar a lua nova. Despedi-me de alguns. Você é maluco, disseram-me dessa vez. E cheguei ao local onde eu mais gostava de ficar, na beira do mar, com as ondas agitadas.
Pensei que, por um momento, eu tive tudo e me desfiz por causa de um caprichoso sonho. Pareço um jovem, porém com rugas coloridas. Talvez seja assim mesmo, as ondas se renovam todos os dias. Ensaiei um salto. A praia está cheia. Em segundos percebi sombrinhas de praia, bolas, discos, gritos, sons. Eles pareciam felizes respirando aquele ar. Por que não? Contive-me novamente. É tudo o que eu tenho: a minha coragem. Voar não posso, nadar já enjoei. Quero sentir o ar. Com impulso, peguei uma onda brava e alta. Gritei na mesma intensidade da força que fazia para fora da água. Até não poder mais sentir nem uma gota. A pancada na areia me deixou tonto e surdo de um lado.
Quando eu abri os olhos, só vi crianças feias e escandalosas. Mas, calma, esqueça os outros e respire, sinta o ar, disse a mim mesmo. O ar. Não tem cheiro algum, a não ser de praia. Alguma coisa tentava secar minhas escamas e eu passava a sentir frio, um friozinho agradável, diferente das águas glaciais. O ar. Este é o ar então. Mas não parece que ele possa me sustentar. Já começo a sentir falta de água, da minha água salgada. Vou tentar, pela última vez, voar com minhas barbatanas. Um fracasso. Alguém colocou as mãos em mim, mas eu só quero sentir este ar tão pequeno. Ele não é grande o suficiente para mim. Vou precisar de um pouco mais, gritei. Traga mais ar, por favor, ele é bom, porém é pouco. E ainda dizem que o ar é maior que o mar. Eu nunca precisei pedir mais mar, e isso há oito longos anos. Mas, ah, estes minutos fizeram-me sentir um pouco de coragem no ar.
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Sarah Vervloet nasceu em Vila Velha, no Espírito Santo, em 1989. É graduada em Letras-Português pela UFES e atualmente cursa o Mestrado em Letras/ Estudos Literários na mesma universidade. É professora e também escreve irregularmente....
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