A MORTE E A VIDA DA ARTE - Márcia C.F.Gonçalves
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A MORTE E A VIDA DA ARTE - Márcia C.F.Gonçalves


ARTIGOS

A morte e a vida da arte1
Márcia C. F. Gonçalves2

RESUMO
Este artigo pretende oferecer uma re-interpretação da suposta tese hegeliana sobre o fim da arte. A especulação estética de Hegel não envolve uma constatação do fim da arte enquanto fenômeno histórico, mas apenas da sua transformação gradual a partir do predomínio da reflexão sobre intuição na idade moderna.
Palavras-chave: Hegel, estética, fim da arte, reflexão  

 
As reflexões estéticas que irei desenvolver aquí são inspiradas em uma filosofia da arte do século XIX, que não apenas fortaleceu de forma decisiva a consciência de que a arte pode e deve ser concebida filosoficamente, como também mostrou que esta (a arte) ? assim como as outras formas de expressão de um espírito que atingiu a consciência de sua própria universalidade ? não se encontra estática ? seja em uma espécie de definição fixa, seja sob uma única forma de manifestação imutável. Estou me referindo à filosofia da arte de Hegel, à qual ainda hoje se costuma atribuir a tese sobre o fim da arte.

Minha recusa em ver no complexo sistema hegeliano de reflexão filosófica sobre a arte conceitos imóveis a começar pelo próprio conceito de arte ? tem a intenção exatamente de afastar leituras que partem de teses igualmente fixadas. 

A tese sobre o fim da arte, assim como aquela sobre o fim da história, ou sobre o fim da filosofia, são todas fixações de uma concepção de história que ? no mínimo ? ignora a compreensão histórico-dialética presente em todo o sistema filosófico de Hegel, segundo a qual não se pode falar de fim, sem que se possa pensar em um novo começo; da mesma forma que não se pode compreender a dimensão do finito, sem que se tenha consciência de que sua verdade é sempre o infinito.

A recusa inicial de partir (como, em geral, manda uma exposição analítica tradicional de conceitos) de definições é, antes de tudo, a recusa em identificar na filosofia de Hegel definições de conceitos, ou melhor: em compreender os conceitos hegelianos como definições, ou como definidos, como definitivos ou finitizados; enfim: como finitos.

É bem verdade que Hegel expressou, em vários momentos de seus cursos sobre a estética ? quase como em uma definição fixa ? que o verdadeiro conteúdo da arte é "o divino" (das Göttliche). E é também verdade que esta "quase definição" tem, em seu início, uma dimensão quase metafísica. Mas o que proponho aqui inicialmente é chamar a atenção para como esta rigidez é apenas aparente, ou ? se de fato ela existe em princípio ? que se dissolve ao longo do desenvolvimento do próprio conceito hegeliano de arte.
Para situar melhor a questão, eu cito a seguir duas importantes passagens que contêm esta afirmação sobre o conteúdo divino da arte.

A primeira pertence à Introdução da obra publicada (intitulada Vorlesungen über die Ästhetik), e está localizada imediatamente depois de uma breve discussão sobre a importância de uma ? então recente ? concepção de arte, que combatia e superava aquela que a definira como mero entretenimento ou meio para se alcançar qualquer outro fim. Trata-se de um certo elogio de Hegel sobre a concepção da bela arte como arte autônoma ou livre:
Nesta sua liberdade, a bela arte é, então, pela primeira vez, arte verdadeira e soluciona a sua mais elevada tarefa quando se situa na esfera comum com a religião e a filosofia e é apenas um modo de trazer à consciência e de exprimir o divino, os interesses mais profundos do ser humano, as verdades mais abrangentes do espírito.3
Segundo esta aparente "definição", "arte verdadeira", ou "arte bela", ou "arte livre" tem ? enquanto uma das esferas do espírito absoluto, ?, assim como a filosofia e a religião, o conteúdo divino absoluto; mas sua forma de manifestação difere das formas das outras duas esferas, exceto por um detalhe: ela é sempre absolutamente histórica. 

O belo é a expressão de deus, 
mas esta expressão só se realiza
em sua forma histórica real e concreta.

Contudo, a concretude histórica da arte ? ou seja: o fato de ela se realizar em obras de arte concretas, que sofrem o processo de ininterrupta passagem do tempo, o qual, por sua vez, longe de ser um elemento natural, corresponde ao desenvolvimento dialético (nunca linear, nem progressivo) da consciência da espécie humana ? tem, em relação à concretude histórica da religião e da filosofia, um elemento que imediatamente agrava sua historicidade e sua concretude; este elemento consiste no fato de que a obra de arte se expressa através da matéria sensível. Neste sentido, o conceito hegeliano de belo ideal não é um conceito meramente metafísico. Ao contrário: ele é a própria dissolução dessa possibilidade, na medida em que nenhuma verdade histórica é também fixa.

Vejamos a segunda passagem da Estética de Hegel que volta a repetir esta "quase definição" de arte como expressão do divino. Ela pertence ao penúltimo parágrafo das Preleções sobre a Estética de Hegel editadas por Hotho, e é localizada exatamente depois da apresentação da comédia como uma forma negativa de dissolução (Auflösung)da arte em geral, e, por isso mesmo (não apenas por ser o momento de compreensão final de todo o processo), deixa claro que não se trata de uma "definição":
A finalidade de toda a arte é a identidade produzida através do espírito, na qual o eterno, o divino, o verdadeiro em si e para si é revelado em real aparição e figura para nossa intuição exterior, para o ânimo e representação.4
Se, por um lado, a verdadeira arte ? realizada concreta e historicamente em uma obra artística bela ? é a manifestação sensível do divino; por outro, este possível deus, que se manifesta ou se realiza na beleza de uma obra, nunca permanece o mesmo ao longo da história da arte.

A tese sobre o fim da arte ? reconhecida na estética hegeliana e repetida aos quatro ventos das academias (não só das de filosofia, como também das de arte) ?, ressurge aqui e agora apenas como pano de fundo capaz de explicar a opção de alguns filósofos do final do século XX e início do XXI por ocupar-se desse objeto tão pouco determinado, tão múltiplo, e cada vez menos sagrado, que é o objeto de arte. 

Assim como para pensarmos filosoficamente a religiosidade hoje é necessário encarar sem medo o fenômeno da morte de deus, não como o fim último de toda a divindade, mas como negação da negação, ou seja, como a negação de um mundo imediatamente visto apenas como finito; ou, se para refletirmos filosoficamente sobre a história hoje, é necessário admitir o fim do conceito de evolução linear e sucessão progressiva que fundamentou inicialmente a idéia teleológica do tempo; também para pensarmos hoje filosoficamente a arte é duplamente necessário abandonar, por um lado, a idéia de evolução histórica da arte em um sentido linear e progressivo, por outro, a idéia de um único conteúdo, estático e divinamente transcendente, para toda e qualquer forma de arte. 

Isso não significa que o filósofo da arte do século XXI possa (mais do que aquele do século XIX) ? graças ao próprio testemunho do surgimento de novas e inusitadas formas artísticas ? melhor compreender o fenômeno da arte. 

Ao contrário: o que o filósofo contemporâneo da arte pode testemunhar é exatamente o desdobramento de uma importante verdade filosófica ? identificada já pelo filósofo do século XIX ? sobre o movimento eternamente contraditório, não apenas da arte, como de todas as formas de produção do ser humano, que, por meio delas, busca, em primeiro lugar, conhecer-se a si mesmo e, em segundo, superar-se ou alcançar a sua liberdade.

Não existe, para Hegel, o momento em que a arte morre, ou deixa de ser arte. O que ele concebe é apenas o movimento da perda de uma espécie de " tarefa" originária da intuição estética enquanto lugar de plenitude ou de satisfação plena do espírito.

Embora longa, é importante reproduzir aqui a famosa passagem da introdução da Estética de Hegel, que comumente foi interpretada como contendo a posição da tese do fim da arte:
Quando damos à arte esta posição elevada, é necessário, entretanto, lembrar que a arte não seria, nem segundo o conteúdo, nem segundo a forma, o modo mais elevado e absoluto de trazer ao espírito a consciência de seus verdadeiros interesses. Pois, exatamente devido a sua forma, a arte também está limitada a um conteúdo determinado. Apenas um certo círculo e nível da verdade é capaz de ser exposto no elemento da obra de arte. Contudo, para ser autêntico conteúdo da arte, há de pertencer à determinação própria desta verdade transitar em direção ao sensível e poder nele ser adequada a si, como é o caso, por exemplo, dos deuses gregos. Em contrapartida, há uma versão mais profunda da verdade, na qual ela não é mais tão aparentada e simpática ao sensível para poder ser recebida e expressa adequadamente por meto deste material. A concepção cristã de verdade é desse tipo, e, sobretudo, o espírito do mundo atual, ou melhor, o espírito de nossa religião e de nossa formação racional se mostra como tendo ultrapassado o estágio no qual a arte constitui o modo mais elevado de o absoluto se tornar consciente. A maneira peculiar da produção artística e de suas obras já não satisfaz nossa mais elevada necessidade. Nós nos elevamos sobre o nível de poder venerar e adorar obras de arte divinamente.5
Hegel não acredita que a arte possa ser para o homem moderno ? como era para o homem grego (e, em certa medida, ainda para o homem medieval) ? a exposição imediata de uma verdade de dimensão divina, que ? longe de ser compreendida apenas como um mito criado pela fantasía humana ? foi, por longo tempo da história do homem no mundo, o fundamento de sua existência, ou a razão de sua vida. 

Exatamente porque o homem moderno não se contenta mais apenas com a contemplação estética imediata como um modo suficiente de acessar essa verdade, ele criou por sí e para si mesmo a necessidade de refletir e de pensar sobre a arte. Na mesma página do parágrafo anteriormente citado, Hegel expõe esta idéia de que a partir da idade moderna:

"O pensamento e a reflexão 
sobrepujaram (hat ... überflügelt)a bela arte".6

Esse processo de complementação que literalmente flutua acima da intuição da beleza da arte, longe de marcar o seu fim, traz, entretanto, uma nova e praticamente definitiva dimensão para o destino da arte. Se a obra de arte da Antigüidade era cultuada no espaço sagrado de um templo, a obra de arte na modernidade passa a ser cultivada como objeto de reflexão no interior de um museu ou de uma galeria de arte. 

Mas os antigos templos, que abrigavam as esculturas dos deuses gregos, e mesmo as igrejas cristãs medievais, que se adornavam com pinturas sagradas, capazes ? em última instância ? de ressuscitar a imagem do deus morto, diferem radicalmente dos museus que se espalham por toda a Europa a partir da idade moderna, abrigando obras de todas as partes e culturas do mundo, incluindo réplicas perfeitas daquelas antigas esculturas gregas e pinturas sacras medievais autênticas.

Essa diferença entre o lugar do culto à divindade e o lugar do culto à obra de arte se complexifica ainda mais se considerarmos o fenômeno histórico contemporâneo de conversão das catedrais cristãs medievais européias à função quase principal de museus, ou, antes, de sua conversão em patrimônios históricos e, conseqüentemente, do reconhecimento do próprio templo como obra de arte. 

Por mais que se possa sim falar de uma espécie de cultivo, de culto, em relação às obras de arte a partir da modernidade, essa cultura das obras protegidas das intempéries, guardadas do tempo, e admiradas no interior do museu, não é mais somente de ordem contemplativa ou intuitiva imediata. 

Por mais que possamos reconhecer nela uma espécie de religiosidade, a cultura do homem moderno freqüentador de museus não se compara, em termos de suas relações mágicas, com a instância do eterno, com a cultura do homem antigo. E, no entanto, o contato com a obra sempre repete e renova a identidade originária entre o finito e o infinito que o antigo homem cultivado descobriu e inventou através de sua maravilhosa imaginação poética. 

A aparente sentença de morte, ou a proposição sobre a dissolução da arte, freqüentemente identificada na estética hegeliana, não passa, na verdade, de uma observação histórica e racional do nascimento da reflexão sobre a arte, ou, mais precisamente, da filosofia da arte, e aponta, em última instância, para um fenômeno que só irá se concretizar inteiramente no século XX: a crítica de arte. Mas, há de se tomar cuidado ainda na compreensão disso que Hegel concebe como reflexão sobre a arte e disso que ele concebe como filosofia da arte. 

O pensar filosófico sobre a arte, ao contrário de analisar seus elementos estáticos ? como, por exemplo, abstraindo-lhe forma de conteúdo ? deve acompanhar as peripécias de suas contradições internas, sua transformação, desde o lugar mais elevado de manifestação da verdade absoluta, até o abismo do vazio de um sentido infinito, penetrado pelo pensamento reflexivo, que não apenas sente a obra, mas lhe dá sentido.

A tarefa do filósofo da arte, entretanto ? independentemente do momento histórico de sua existência ?, não é a de tentar historiar com precisão matemática a experiência do ser humano diante da arte ? em seus diferentes momentos no tempo, seguindo como que sobre o fio de uma imaginária crescente evolução histórica. Ao contrário: o filósofo da arte é aquele capaz de observar que o fato de o ser humano fazer arte pode e deve ser encarado como uma necessidade essencial que nem sempre foi isolada de outras necessidades igualmente vitais para ele.

Mas o filósofo da arte faz mais: o filósofo da arte vivifica diante de si e de seus interlocutores obras concretas de arte, objetos historicamente datados, e os apresenta e descreve de modo a dar-lhes um novo sentido, despindo-lhes muitas vezes de seus restritos e finitos contextos históricos específicos, mas de um modo inteiramente outro daquele que faz, por exemplo, o museólogo. Porque sua intenção não é preservar uma obra do tempo, isolá-la do contato corrosivo com o ambiente da vida real, mas dinamizar seu sentido, abrindo-lhe ambivalências, descobrindo-lhe contradições, fazendo eclodir e explodir uma nova vida de dentro e a partir da própria obra. 

E o filósofo da arte é capaz de fazer isso com uma peça de teatro encenada milhares de vezes desde a Antigüidade, em diferentes línguas e culturas; com uma peça musical executada por diferentes e inúmeros intérpretes ao longo da história, ou com uma obra arquitetônica que não necessariamente se encontra ainda concretamente de pé, servindo de abrigo ou adorno em alguma cidade do mundo. O filósofo da arte quer sempre mais motivos para falar disso que é arte. E o que é arte não pode ser senão através das obras de arte.

Obviamente, cada filosofo da arte irá conceber sua própria idéia de arte, e a partir dela, ou melhor: a fim de construí-la, em geral, ele volta sua reflexão filosófica sobre algumas obras, de preferência sobre aquelas que lhe parecerem mais paradigmáticas. Todo filósofo da arte faz isso, mas quem solidificou esse método de compreensão do conceito mediante o fenômeno histórico, e vice-versa, foi a estética hegeliana. Vou citar apenas um exemplo dessa reflexão sobre a arte a partir de uma obra concreta que envolve a mais paradigmática figura da estética de Hegel anteriormente citada: a escultura do deus grego que corresponde à realização do ideal hegeliano de beleza, por manifestar inteiramente, e de forma adequada, a idéia divina na forma material sensível. 

O verdadeiro motivo dessa localização histórica do ideal, ao contrário de ser o aspecto aparentemente estático da obra plástica, é o fato de esse deus se concretizar antropomorficamente, pois o corpo humano é a forma sensível, que, segundo Hegel, mais imediatamente revela a espiritualidade. Nenhuma outra forma natural ou não ? pode sugerir com maior certeza e imediatez a presença de uma alma ou de um espírito que pensa. Pois o homem ? e apenas o homem ? é a própria determinação desse espírito no mundo da vida. 

Mas o corpo esculpido não tem vida! ? diriam alguns... Isso é verdade, e é exatamente isso que, contraditoriamente, ou melhor: dialeticamente, preserva nesse corpo a ausência de uma contingência e finitude próprias da vida apenas natural. 

Os deuses gregos esculpidos 
são quase tão eternos quanto a própria idéia 
ou o próprio conceito de divino.

Hegel analisa a forma corporal humana do deus grego da plástica clássica, revelando alguns detalhes surpreendentes em relação à forma corporal humana, exatamente para provar que a arte bela não é imitação, mas sim, o que ele chama de "idealização".

A matéria sensível do corpo do deus grego esculpido é o mármore, e o mármore é imediatamente a matéria mais bruta existente, a mais dura, a mais fria, a mais imediatamente distinta do corpo orgânico do homem vivo. Entretanto, o fascínio desperto por essas imagens concretas está exatamente no profundo caráter ilusionista que elas nos oferecem, ao nos possibilitarem superar a apreensão sensível imediata da pedra e imaginar, no corpo de mármore, o mesmo calor e maciez de um corp? humano.

A suavidade de cada gesto, ou mesmo a energia de cada ato de luta representado por essas estátuas é tão realista que nos faz superar a imediatez de uma percepção sensível, dando a impressão de que esse corpo pulsa, vive e até respira.

A arte bela é então para Hegel a arte realista, a arte que nos leva a crer que aquilo que é representado ? o corpo humano ? é real, vive. Por outro lado, esse perfeito realismo não é pura imitação, porque ele é constituído por meio de um processo de formação da própria idealidade ou do que Hegel denomina de idealização do sensível. Por isso ele chama a arte bela de arte ideal. Mas o que significa exatamente idealização do sensível? No caso da escultura, a idealização pode ser compreendida em duas dimensões. 

A primeira é a própria espiritualização da matéria sensível, ou seja, a transformação, não apenas no sentido de Transformierung ou Verwandlung, mas no sentido do termo empregado por Hegel de Umbildung, que além de mudança de forma, tem o sentido figurado de reorganização, de mudança estrutural, de mu-dança de ordem. Assim, a mudança da forma bruta da pedra em forma humana da escultura é a reorganização da matéria sensível em espírito, quase como uma transubstanciação ? o que justifica a força religiosa dessa forma de arte:
O espírito grego é o artista plástico, que transforma a pedra em obra de arte. Nessa transformação, a pedra não permanece mais uma mera pedra e não traz em si mesma apenas exteriormente a forma; ela é, ao contrário, transformada e feita, contra a sua natureza, em expressão do espírito.7
A outra dimensão da idealização ou espiritualização da matéria sensível mediante a plástica clássica diz respeito à própria corporalidade já formada, pois o corpo humano do deus grego é já um corpo ideal, ou seja, é um corpo representado livre das contingências naturais que afetam o corpo humano vivo.

É como se, ao esculpir a estátua do deus, o artista não estivesse apenas lapidando os inúmeros ângulos obtusos e imperfeitos da pedra, dando a ela suavidade, esfericidade e maciez, mas também lapidando as imperfeições características de um corpo humano em sua constituição natural. Os maiores exemplos encontrados por Hegel dessa lapidação da naturalidade do corpo humano no deus esculpido estão localizados, não casualmente, na face das estátuas. O mais clássico deles é a linha quase vertical do nariz, considerada a linha da beleza. 

Ao representar a cabeça humana com esse traço exagerado, o artista estaria, segundo Hegel, não simplesmente retratando um tipo étnico particular, mas sim elevando a expressão da face a uma universalidade fundada na afirmação da diferença entre o corpo humano e o corpo animal, cuja linha do nariz é, em geral, horizontal. 

Outro aspecto encontrado por Hegel para demonstrar a idealidade do corpo do deus esculpido são os olhos. Ele percebe um certo recuo geométrico antinatural dos olhos em relação à face, o que demonstraria a necessidade de acentuar um caráter de interioridade. É como se o deus esculpido não olhasse para fora, mas voltasse o seu olhar para si mesmo; é como se ele refletisse, dando origem, pela primeira vez na história fenomênica da arte, a uma importante contradição dialética:

"O espírito aparece totalmente mergulhado 
em sua figura exterior, 
mas está ao mesmo tempo voltado para si."8

As "evidências" encontradas por Hegel na figura da arte plástica clássica para fundamentar a tese de uma idealização do sensível são já de fato exercícios hermenêuticos de um filósofo da arte, de certa forma ainda preso a uma espécie de formalismo conceitual do fenômeno artístico, expresso por meio daquela quase definição inicial da arte como manifestação sensível do divino. Mas, no interior dessa mesma descrição, ou seja, no processo mesmo de busca de fundamentação do conceito de bela arte por meio do fenômeno da obra de arte bela, Hegel vai descobrindo e nos revelando a própria contradição presente na realidade da obra, e que vai necessariamente sendo incorporada pela concretude do conceito. 

Essa contradição é exatamente interna aos momentos constitutivos do próprio fenômeno do belo, entre a matéria e a forma; entre a idéia e sua manifestação sensível, ou ? para ficar mais concreto e claro ? entre a imortalidade do deus e a finitude da pedra.

Essa já é sem dúvida a primeira figura estética da morte de deus. Uma morte que ainda não se realizou por completo, pois é salva pela beleza e harmonia propiciadas pela forma sensível idealizada.

Mas ela é a morte de deus enquanto processo de luta interior entre o espírito e a matéria. Hegel fala literalmente de um Trauer, de um luto do deus esculpido.

O que será o luto,
senão a tristeza mais profunda 
diante da morte ou ante a possibilidade 
da própria finitude? 

Aquela interioridade do deus esculpido
na matéria sensível pode aqui ser compreendida 
como um aprisionamento do espírito 
infinito na natureza finita. 

O deus esculpido é já o germe do herói trágico. 
A tragédia é o lugar próprio 
da representação da morte.

A arte morre! 
Morre como deus; 
ressurge como homem!

Encarnada como o corpo vivo do ator trágico, que no lugar do corpo esculpido do deus olímpico (apenas aparentemente quente e pulsante), não só se movimenta, livre, sobre um palco, como fala, age, pensa e sofre o seu próprio pathos que é sim universal e não passa de um prolongamento do luto interno e contraditório da escultura do deus imortal, aprisionada na finitude absoluta da matéria mais bruta do mármore.  

O pathos do herói trágico consiste em sua solidão, ao ver-se cercado pela ruína do templo dos antigos deuses, que agora o abandonaram, deixando-o só em um mundo absurdo... Esta ruína se expressa através do céu aberto do teatro dramático, que prepara para a verdadeira morte de deus, para o destino também trágico de um deus que morre de verdade, sangrando a sua própria carne pregada na cruz!
 
Pois nada é tão trágico,
nada é tão dissonante quanto a entrada em cena 
de uma arte que não apenas figura a morte,
mas que também exalta a figura do deus morto.

O belo da arte medieval e cristã 
é a busca da sublimação do sensível,
com a intenção de consolar e redimir
o luto pelo deus morto. 

A arte perde em matéria,
rompe com a tridimensionalidade, 
e se interioriza na pintura sacra. 

Leva-se muito tempo expiando essa morte, até que, de repente, na modernidade, a arte assume-se não apenas como sendo a forma de manifestação de um deus morto, mas como a realização de formas sem conteúdos pré-fixados, o que não significa que ela não possa ser bela.
 
O que morre não é a arte, 
tampouco a obra, e sim o deus 
que constitui seu conteúdo originário.

Desse modo, a arte passa a ser tão somente profana, aceitando cada vez mais dentro de si a contingência e a particularidade do mundo prosaico, perdendo cada vez mais a sua poesia originariamente mítica para dar lugar a uma prosa dessacralizada. Admitindo o feio, o dissonante, o finito...
A arte se revela 
não mais como instância última 
de contato com a totalidade. 
Mas uma instância primeira de contato com a totalidade
de um mundo cada vez mais fragmentado.

Em um momento histórico em que o ser humano perdeu a ilusão ou a esperança de que a verdadeira liberdade se dá com a libertação de todos, com a realização de todas as possibilidades de uma vida coletiva harmônica ? porque fundada no reconhecimento mútuo, na aceitação do outro como um diferente, porém igual ?; em um mundo onde o conceito de liberdade regrediu (ou evoluiu) para a afirmação da própria vontade individual; a liberdade da arte está não mais em unificar todos os homens que intuem uma mesma obra, reforçando o reconhecimento da própria humanidade, mas sim em afirmar a infinita diversidade de interpretações, deixando que cada um reconheça e reafirme sua própria consciência de individualidade e particularidade talvez incomunicável. 

A abertura da arte em seu ponto máximo acarreta, contraditória e dialeticamente, o hermetismo de uma obra que se abre inúmeras vezes, mas cada vez com um novo sentido. Há filósofos da arte contemporâneos que compreendem esse fenômeno de multiplicidade na arte como fundamental para o exercício da tolerância; e vai haver sempre um filosofo da arte tentando entender o sentido profundo desse fenômeno que nunca morre.

De todo modo, não parece tão triste imaginar que a arte perdeu sua função de revelar o maior dos sentidos do mundo e da vida, pois essa perda foi essencialmente necessária para a conquista de sua verdadeira autonomia, de não ter que servir a nada além de si, e de ter apenas seu sentido em si mesma.

Não há motivo para vestirmos luto
ao diagnosticar a real situação da arte hoje. 

A transformação do seu conteúdo eterno e divino em finito possibilitou-lhe atingir o extremo de sua libertação, que consiste em ter muitos e infinitos sentidos, e conseqüentemente de não fazer mais qualquer sentido em si mesma.

A ARTE MORREU! UM VIVA A ARTE!

1 Este artigo foi elaborado a partir da conferência proferida em 22 de outubro de 2003, por ocasião do evento em homenagem a Gerd Bornheim, que faleceu no dia 5 de setembro de 2002, e organizado pelo Centro de Ética do IFCH da UERJ: "Semana em Homenagem ao Filósofo Gerd Bornheim".
2 Professora Adjunta de Filosofia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Doutora em filosofia pela Freie Universität Berlin e convidada a participar deste número da Kriterion.
3 Tradução minha. No original: In dieser ihrer Freiheit nun Ist die shone Kunst erst wahrhafte Kunst und löst erst ihre höchste Aufgabe, wenn sie sich in den gemeinschaftlichen Kreis mit der Religion und Philosophie gestellt hat und nur eine Art und Weise ist, das ttliche, die tiefsten Interessen des Menschen, die umfassendsten Wahrheiten des Geistes zum Bewußtsein zu bringen und auszusprechen." HEGEL. Vorlesungen über die Ästhetik. v. I, p. 20-21. HEGEL. Cursos de Estética, v. I. p. 32.
4 No original: Der Zweck aller Kunst Ist die durch den Geist hervorgebrachte Identität, in welcher das Ewige, Göttliche, an und für sich Wahre in realer Erscheinung und Gestalt für unsere äußere Anschauung, für Gemüt und Vorstellung geoffenbart wird.'' HEGEL. Vorlesungen über die Ästhetik, V. III, p. 572-573. HEGEL. Cursos de Estética, V. IV. p. 275.
5 Trad. minha. No Original: Wenn wir nun aber der Kunst einerseits diese hohe Stellung geben,

ABSTRACT
This article intends to offer a re-interpretation of Hegel s supposed thesis about the end of the art. Hegel's aesthetic speculation doesn't involve the verification of the end of the art as a historical phenomenon, but just of its gradual transformation starting from the prevalence of the reflection in the modern age.
 Key-words: Hegel, aesthetics, end of the art, reflection

Fonte:
SciELO - Scientific Electronic Library Online
Kriterion:Revista de Filosofia
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Kriterion vol 45 no.109 Belo Horizonte Jan/June 2004  



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