ANÁLISE DA CANÇÃO "QUE PAÍS É ESSE" (LEGIÃO URBANA)
Cultura

ANÁLISE DA CANÇÃO "QUE PAÍS É ESSE" (LEGIÃO URBANA)



QUE PAÍS É ESSE
(Composição: Renato Russo)

Nas favelas, no Senado

Sujeira pra todo lado
Ninguém respeita a Constituição
Mas todos acreditam no futuro da nação
Que país é esse?
Que país é esse?
Que país é esse?

No Amazonas, no Araguaia iá, iá,

Na baixada fluminense
Mato grosso, Minas Gerais e no
Nordeste tudo em paz
Na morte o meu descanso, mas o
Sangue anda solto
Manchando os papeis e documentos fieis
Ao descanso do patrão
Que país é esse?
Que país é esse?
Que país é esse?
Que país é esse?

Terceiro mundo, se foi

Piada no exterior
Mas o Brasil vai ficar rico
Vamos faturar um milhão
Quando vendermos todas as almas
Dos nossos indios num leilão
Que país é esse?
Que país é esse?
Que país é esse?
Que país é esse?

Que país é esse (URBANA, 1987, Encarte p. 6)

Sobre essa música, disse Renato: “Aquela pergunta não é uma pergunta, é uma exclamação! Porque quem me diz que país é este são as pessoas que vivem aqui. A gente tem um material fabuloso a ser trabalhado aqui no Brasil. A gente percebe certas coisas: tem muita gente trabalhando, tem muita gente fazendo muita coisa boa. O Brasil é também um país de Primeiro Mundo. Aqui , num raio de dez quilômetros, vai ver quantas locadoras de vídeos têm. É Primeiro Mundo também! Agora, só para uma parte das pessoas.(1989)” (RUSSO, 2000, p. 209-210).

Uma música escrita em 1978 para o então Aborto Elétrico, primeira banda de Renato, só lançada em disco em 1987 no terceiro trabalho da Legião Urbana. Já no encarte a própria banda comenta as músicas demonstra que apesar de serem canções antigas, ainda são atualíssimas no atual cenário político-social: “as letras dessas nove canções refletem uma ingenuidade adolescente mas só por terem sido escritas há quase nove anos atrás. A temática continua atual, às vezes até demais”(URBANA,1987, p.3).

Ainda no encarte a banda registra seu pensamento em relação a essa música de ritmo tribal, de três acordes e muitos riffs de guitarra: “(...) Seu refrão (com direito a ô, ô, ô, ô e participação do público) é simples, direto e eficaz. Nunca foi gravada antes porque sempre havia a esperança de que algo iria realmente mudar no país, tornando-se a música então totalmente obsoleta. Isto não aconteceu e ainda é possível se fazer a pergunta do título, sem erros” (idem, p. 5).

Exclamação ou pergunta, a pontuação é a mesma: uma reflexão sobre a situação do país. A irreverência está não só por ter sido composta em 1978, plena ditadura militar como, sobre tudo, na sua constante contemporaneidade, e ainda hoje, aproximando do fim da primeira década do século XXI, há muita sujeira para todos os lados da sociedade.

Postas numa mesma sentença, favela e Senado não se distinguem. No verso seguinte o motivo da semelhança “Sujeira pra todo lado”. Em dois extremos: o lugar de todo poder (aqui o Senado pode muito bem representar os três poderes) e o lugar de poder nenhum. Mas se acrescentarmos às favelas a figura de poder do traficante, onde ele quem faz e executa as leis, julga e condena, protege e violenta o povo, verificamos que essa comparação não é tão paradoxal. O lixo que povoa os dois lugares. Não há uma só “qualidade” de lixo. É o lixo moral, o lixo comercial, o lixo intelectual, enfim, lixo representando tudo aquilo que não presta. No verso seguinte, a canção sentencia: “Ninguém respeita a constituição”, nenhuma pessoa respeita a constituinte, a carta magna, o que regulamenta a nação. Nem mesmo os que criam e votam as leis muito menos àqueles que deveriam vivenciar tais leis. Até aqui a letra apresenta uma visão niilista da situação, está tudo um caos nos vários setores da sociedade. Contudo, no verso seguinte, há um operador “mas”, onde tudo o que fora dito primeiramente, que é de conhecimento de todos os interlocutores, posto como argumento possível, é ligado (ironicamente) por um argumento decisivo “todos acreditam no futuro da nação”, dando uma idéia de “estática”. Por mais que as coisas estejam ruins, ainda há a esperança de que tudo vai ser melhor num futuro, que como propõe a contemporaneidade da canção, nunca chega.

O refrão é cantado de forma visceral e a cada aclamação não faltam pessoas a definirem que país é este. Os próximos versos mostram a dimensão do “ninguém” e do “todos”, em todas as partes do país, em suas mais diversas regionalidades e diferentes culturas, tudo está em paz:

No Amazonas, no Araguaia iá, iá,
Na Baixada Fluminense
Mato Grosso, nas Gerais e no
Nordeste tudo em paz

Mais um ponto irônico e irreverente da canção. A música não diz que está tudo em paz. Não simplesmente omite o verbo de ligação. Mas sim, um ar de “tudo está sob controle”. Até aqui, o texto foi escrito de forma indefinida, na terceira pessoa. Porém, já no próximo verso, um eu entra em cena para afirmar a condição de paz como controle de um poder sobre os demais membros da sociedade, mais à frente sendo representado por “patrão”, ou seja o chefe. Ao dizer que “na morte eu descanso”, esse “eu” afirma que enquanto vivo não tem descanso, tornando possível a interpretação, por um sub-entendido, de que na vida ele não tem sossego. A própria definição de descanso denota a morte. Ainda há, no senso comum a máxima “descanse em paz” para as pessoas que estão prestes a morrer. Outra vez o operador “mas” entra em ação em mais uma demonstração irônica de irreverência: apesar de morto “o sangue anda solto / Manchando os papéis e documentos fiéis / Ao descanso do patrão”. Esses versos nos remetem a vários sentidos, os campos semânticos das palavras escolhidas podem nos levar a vários lugares, nessa extraordinária polissemia, no país onde a impunidade é tão comum que virou “via de regra” podemos interpelar o último verso como norteador: a diferença do descanso do “eu” em relação “ao descanso do patrão”.

Esse não morre para ter uma vida tranqüila, mas mata, tanto que o sangue daqueles que morreram marcam seus fiéis documentos. Mas quais documentos e papais serão esses? Se julgarmos pelo que temos de informação na letra, poderíamos supor que os documentos fiéis ao descanso do patrão seriam as páginas da constituição que ninguém respeita, mas que, infelizmente, é utilizada para legalizar algumas “falcatruas” dos poderosos em depreciação do povo brasileiro. Tanto que documentos também são feitos de papéis, mas aqueles não quaisquer papéis, são documentos, importantes para o país, que são fiéis ao patrão, àquele que é dono, que manda, que é o chefe. Com esse ponto de vista, se forçarmos mais ainda a interpretação, levados pela linguagem metafórica, poderíamos supor que os “papéis” a serem manchados pelo sangue que ainda não morreu junto com o “eu” é o que cada um representa na sociedade. Cada cidadão tem seu papel, professor, policial, operário, jovem, idoso, político, artista... Todos são brasileiros, todos têm direitos e deveres regidos pela constituinte, mas que, quando um “eu”, que descansa depois de tanta sujeira, morre, ninguém se importa, tendo, então, seus “papéis” manchados, chamando assim, para todos a responsabilidade sobre todos.

Novamente o refrão, que depois de mais informações sobre a situação constitucional e cívica do país se questiona: “Que país é este?” em seguida, nos próximos versos, saímos da visão interna, de dentro do país para uma visão externa. Numa época que os países eram divididos em primeiro, segundo e terceiro mundo, a comicidade do arranjo frasal nos coloca mais uma vez diante de ambigüidades: “Terceiro mundo, se for / Piada no exterior”. Os países ricos são os do primeiro mundo, os pobres são os do terceiro mundo. Havia ainda os países do segundo mundo, que não eram tão ricos para serem do primeiro, mas tinham muito poder bélico para ser terceiro mundo.

E o Brasil? O 5º maior país do mundo, onde, juntamente com toda a América Latina, por mais de trezentos anos, enriqueceu a Europa, vivendo num sistema de ditadura militar (hoje não há mais uma ditadura militar no poder, mas há quem diga que ainda é uma ditadura), podemos ver a piada, de forma bem irreverente, como sendo o país incapaz de ser pelo menos “terceiro mundo”. É um dito engraçado para o exterior sermos terceiro mundo. Hoje não temos mais essa nomenclatura, não por deixamos de ser um país pobre do terceiro mundo, mas porque o segundo mundo deixou de existir. Os países ricos são os “desenvolvidos” e os outros “em desenvolvimento”. E novamente o operador “mas” entra em ação demonstrando a mesma irônica esperança de um futuro melhor “o Brasil vai ficar rico” vai deixar de ser terceiro mundo, vai deixar de ser piada no exterior, pois “vamos faturar um milhão”, como se um país rico precisasse apenas de um milhão de qualquer dinheiro para ser rico. Seremos isso “quando vendermos todas as almas / dos nossos índios num leilão”. Outra metáfora forte e realista. Jogando com as idéias, através do ato de fala desses versos, a letra apresenta uma piada para dar como solução do problema de sermos um país pobre e uma piada.

Durante toda a existência do nosso país, a saída de riquezas para o exterior foi consistente, permanente e notória. Aqui já temos uma noção de quem poderia ser o “eu” que fala na canção. Uma característica marcante nas músicas do Renato é ter mais de um eu, ou seja, suas letras são construídas por várias vozes, às vezes não sendo possível distingui-las. Nessa música temos dois “eus”. O primeiro, aquele que só descansa na morte, sendo coagido pelo patrão, que tem os documentos a seu favor. Esse pode ser a voz do índio brasileiro, mas não só aquele índio nativo, mas todos os cidadãos que são índios, vivendo em tribos, às vezes nômades (sem casa própria), às vezes brigando por seu pedaço de terra (os sem-terra), ou ainda aqueles que vivem (ou querem viver) como os brancos (as classes médias), mas não têm condições financeiras e culturais para isso, pois são aculturados de sua própria identidade vivendo uma pseudo-cultura brasileira.

Quando a primeira pessoa passa do singular para o plural, esse “eu” ganha outras vozes. O “vamos” e o “vendermos” se refere não só aos “eus” que povoam a letras, mas a todos os interlocutores da canção. Dos componentes da banda aos fãs, até mesmo aqueles que não ouvem e não conhecem a música, todos nós somos responsáveis pelo que já aconteceu, pelo que acontece e, sobretudo, pelo que acontecerá com o país. E assim, encerra a canção, com o refrão levando aos ouvintes a pensar que país é “este” e não “esse”. O elemento anafórico em questão nos remete a algo que está próximo de quem fala. Este que está próximo da gente, este que vivemos, não esse Brasil que é piada no interior e no exterior, mas este que está próximo de todos os brasileiros.

Além da letra irreverente, a canção possui um som caracteristicamente do rock’n roll. Já na introdução, quando os tambores vão aumentando de som e força, culminando um riffalucinante de guitarra e com gritos do Renato ao fundo, propõe pensar a violência que é não saber que país é o nosso. E provoca uma explosão de sentimentos que, pretende, levar os ouvintes a dar um basta na imobilidade e agir. Os efeitos proporcionam a sensação de se ter, durante os primeiros acordes, correntes sendo arrastadas, como se antes de prestarmos atenção aos fatos que a canção mostra, nos vemos imóveis e enclausurados na nossa ignorância. Ligando a irreverência do rockà atitude dos jovens. Demonstrando o caráter desse estilo musical, ou seja, o seu ethos, como nos lembra, da tradição grega, Wisnik: “(...) que os gregos chamavam o ethos da música: o seu caráter,um certo padrão de sentido afinado segundo seu uso, e que fazia com que algumas melodias fosse guerreiras, outras sensuais, outras relaxantes, e assim por diante” (WISNIK, 1999, p. 117).

Impulsionados por uma melodia guerreira, a irreverência da letra convida seus interlocutores à guerra contra todas as formas de discriminação e escravidão dos brasileiros. Para que após nos questionarmos “que país é este?”, nos espantarmos ao descobrirmos “que país é este!!” possamos construir um país que é este: uma nação brasileira.


(Texto de Marxwel Alves Pantaleão)



Marxwel Alves Pantaleão, formado em Letras Português pela UFES, é professor de português e literatura. Além de poesia, escreve contos, crônica e letras de música. Não se considera um poeta, mas sim um fascinado pelas letras. Gosta de Legião Urbana e todas as vertentes do Rock. No romantismo e no Simbolismo se encontra, mas flerta com o modernismo. Mantém um Blog na rede (www.marxletras.worpress.com) onde publica as Letras dele mesmo e de seus heterônimos (sim, ele gosta de Fernando Pessoa e se acha!). 





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