ANÁLISE DA CANÇÃO "FÁBRICA", DO GRUPO LEGIÃO URBANA.
Cultura

ANÁLISE DA CANÇÃO "FÁBRICA", DO GRUPO LEGIÃO URBANA.




Fábrica - Legião Urbana (Composição: Renato Russo)

Nosso dia vai chegar

Teremos nossa vez

Não é pedir demais:
Quero justiça
Quero trabalhar em paz
Não é muito o que lhe peço –

Eu quero um trabalho honesto

Em vez de escravidão


Deve haver algum lugar
Onde o mais forte não
Consegue escravizar
Que não tem chance

De onde vem a indiferença
Temperada a ferro e fogo?
Quem guarda os portões da fabrica?

O céu já foi azul, mas agora é cinza
O que era verde aqui já não existe mais
Quem me dera acreditar
Que não acontece nada de tanto brincar com fogo

Que venha o fogo então


Esse ar deixou minha vista cansada

Nada demais


O disco o qual essa música faz parte foi lançado em 1986. O público ainda estava explorando as músicas do primeiro trabalho, mas não demorou muito para esse segundo disco entrasse no gosto dos fãs (vendeu, na época, mais de 915 mil cópias em vinil). Esse trabalho estava submerso em metáforas e ironias. Há nesse disco o encontro de vários “eus” falando do universal, da experiência individual de cada um, “Então, a gente quer falar sobre isso: do ponto em comum que une todas as pessoas. (1986)” (RUSSO, 2000, p. 82). A coletânea “Música para Acampamentos” traz a gravação de Fábrica cantada do começo ao fim no Parque Antártica, estádio de futebol em São Paulo. Umaintrodução alucinante, com guitarras e teclados, explodiu ao som da bateria dando a deixa para Renato iniciar a canção. Tipicamente uma canção de rock.

A princípio, a canção começa na primeira pessoa do plural, logo depois do terceiro verso já toma a palavra uma primeira pessoa do singular. Só que essa pessoa fala para alguém que não participa da primeira voz no plural. A julgar pelo título da música poderíamos dizer que um sindicalista fala aos seus pares que ainda há esperança e vai ao patrão exigir o mínimo para seu trabalho. Porém esse líder se perde no meio de seus questionamentos e todas as vozes desaparecem, restando apenas o olhar ao redor e, junto com o reconhecimento, o ímpeto e a morte.

Um ciclo comum, como o era nas canções de Renato, que tinha como fim o suplício de sua continuação. O que é demais nas lutas de classe de Marx no Brasil de 1986? O que a redemocratização brasileira estava planejando para continuar a industrialização promovida pela ditadura? Após os gritos de que país é esse, o que se esperar de um presidente não eleito pelo povo com uma “herança [de] uma dívida externa de 100 bilhões de dólares e uma inflação de 230%”? (CAVANA, 2000, p. 340). O que cada indivíduo poderia querer ou esperar?

Sob a metáfora de uma fábrica, os “eus” protestavam não só contra a situação do país, mas contra uma inércia pessoal que pairava no Brasil da Legião Urbana. Os dêiticos usados na canção deixam bem claro que os que se achavam alheios à música é quem fala por ela, assim o auditório e seu orador se fundiam e confundiam-se. “Nosso dia vai chegar / teremos nossa ver”, aqui é importante ressaltar que o orador se colocou de igual ao seu auditório, dando início à fundição. O primeiro poderia muito bem dizer: “o dia de vocês irá chegar, vocês terão a sua vez”, mas não, ele deu um valor a essa comunicação que proporcionou ao orador ser a voz de seu público.

Esse efeito comunicacional se deveu ao fator de o autor escolher esse ato de fala e não o outro. Pois a situação é a mesma para todo mundo, ninguém até então tinha direito a nada, tanto que a única coisa que os ligavam, além do problema, era a esperança de uma solução.  E com uma anáfora, mais precisamente uma catáfora, lastima um direito (e não um dever), “não é pedir demais:”, assim mesmo, com dois pontos no fim do verso. Em seguida suas reivindicações: “quero justiça /quero trabalhar em paz”. Retoma que seu desejo é simples, não é demasiado o que ele e seu auditório querem, “não é muito o que lhe peço – e após um travessão a continuação de sua solicitação: “eu quero um trabalho honesto / em vez de escravidão.”.

O verbo querer pressupõe o desejo de algo que não se tem. Se alguém quer uma laranja, já possuindo onze, quer ter uma dúzia, ou seja, quer ter mais. Se alguém, que não tem nenhuma laranja, quer uma, seu desejo é ter algo que não possuía, quer mais, pois não tinha nada. Justiça não é concreto como uma laranja, mas a falta dela é muito palpável e o sofrimento evidente. Esse “eu” que fala em nome do “nós” denuncia a falta de justiça e de paz para trabalhar. Em seguida o orador continua a denúncia: ele e seus pares são escravos de um trabalho desonesto. Qual trabalho seria esse? Onde ele fica? Para responder a essas perguntas, nos remeteremos ao título da canção, numa única resposta: Fábrica! Essa metáfora nos revela ser uma metonímia. Mas, ao invés da parte pelo todo, uma metonímia do todo pela parte: toda ação de construção social é a fábrica. São todos as espécies de trabalhos e empregos que podemos conceber, seja como músico, pedreiro, industrial, estudante, dona de casa. Em todos há uma fábrica de sonhos e pesadelos. Em todos podemos ser livres e honestos ou escravos no meio de injustiças. Essa relação fica mais clara nos versos seguintes: “deve haver algum lugar / onde o mais forte / não consegue escravizar / quem não tem chance.”.

Nessa parte do nosso texto, o leitor, provavelmente, deve ter notado a forma como pontuamos os versos da canção. Pois bem, fora proposital. Chamamos a atenção dos sinais de pontuação contidos na letra dessa canção, os dois pontos e o travessão, agora, enfatizamos o ponto final, tanto após a primeira estrofe, que termina em “em vez de escravidão.”, quanto nessa segunda, que termina em “quem não tem chance.”, marcam mudanças no acorde. A música tem uma base em duas notas, que desde a introdução até o momento onde o orador começa a pedir o que não é demais, são as mesmas duas notas. Quando do início de suas reivindicações, a canção passa a ter outros acordes lhe sustentando, uma ruptura e uma mudança visível (ou melhor, audível). Ao iniciarmos esses versos, que encerraram o parágrafo anterior a esse, as bases voltam, novamente as duas notas que soaram no início mais uma vez sustentam a canção.

A mesma esperança do início, que uniu orador e auditório, se transforma em questionamentos comuns a ambos: deve haver esse tão sonhado lugar onde aqueles que são fracos não serão escravizados pelos mais fortes. Uma alusão bíblica que nos remete a várias passagens da mesma. Dentre elas, selecionamos o sermão da montanha, o qual suas “bem-aventuranças são o anúncio da felicidade, porque proclamam a libertação, e não o conformismo ou a alienação” (STORNIOLO, 2001, P.1242). A bíblia, como sendo uma grande fábrica de esperança e fé, também entra na crítica e encorpa o coro por justiça e paz.

Na próxima estrofe, um outro acorde. Esse, na estrutura sonora, funciona com desfecho e prepara para recomeçar a seqüência de acordes até então tocadas. É justamente quando o orador questiona a violência, essa que é responsável por injustiças e pela ausência da paz. “De onde vem a indiferença / temperada a ferro e fogo? / quem guarda os portões da fábrica?”, com esse primeiro verso, temos a nítida impressão de que não se trata de um protesto comunista, de uma cobrança por igualdade. Não é a diferença que mais incomoda os interlocutores nessa canção, e sim a indiferença.

E esse é o sentimento chave da canção: a indiferença. É essa quem transforma a libertação em conformismo e alienação. Uma indiferença condicionada a ferro e fogo, metáforas de violência. Forçando um pouco mais a interpretação, pode-se julgá-las como armas da repressão que tomaram conta do país até aquele momento histórico. Ainda vemos, de forma subentendida, elíptica, o operador argumentativo mas. De onde vem toda essa injustiça condicionada e imposta? Mas quem é mesmo que controla toda a produção? Quem abre as portas das construções sociais? O orador é uma fábrica. Cada um de seu auditório é outra fábrica. Cada indivíduo pode produzir qualquer coisa. A indiferença é o ponto comum na relação entre a fábrica e o mundo onde está inserida.

Mais à frente, uma relação ambígua de sentido. Em evidência a consciência de preservação, o orador dos versos seguintes poderia estar protestando contra a poluição. Mas essa parte é a volta dos primeiros acordes, aqueles dois acordes da introdução que representam o discurso do orador e seus pares. Os operadores “” (somado ao verbo “foi”), “mas” e “agora”, usados nessa estrofe, reforçam uma posição discursiva onde o orador quer introduzir uma mudança de estado e pressupõe, com ajuda dos signos e significações das cores azul, cinza e verde, que o que havia antes era melhor do que há hoje. Indo, inclusive, além disso, na verdade, hoje não há mais. Após toda aquela indiferença temperada a ferro e fogo acabou com a alegria, o azul e com a esperança, o verde. Assim, “o céu já foi azul, mas agora é cinza / e o que era verde já não existe mais.”, podem ser versos de ambígua interpretação, pois os signos invocados têm essa características polissêmicas.

Em vários ditos populares, envolvendo o ato de brincar com o fogo, trás como moral uma conseqüência não agradável. Ainda mais quando se é criança, idade em que o fogo é um grande atrativo, nunca se acha que os ditos sejam verdades, que acontecem mesmo com quem se atreve a brincar e desafiá-los. O orador, ao aproximar-se do fim de sua oratória, joga com essas pueris lembranças, que no fim não são nostálgicas, mas o reconhecimento de uma certa maturidade. Mesmo sabendo que acontece algo quando se brinca com fogo, pois fica claro que o orador crê que a conseqüência existe, ele desafia e se propõe a lutar: “quem me dera acreditar / que não acontece nada de tanto brincar com fogo/ que venha o fogo então”. Esse último verso demonstra um desejo do orador. Essa afirmação está baseada na sua construção frasal, onde o uso do verbo no modo subjuntivo venha e o uso do denotador de situação (BECHARA, 2004, p. 291) então proporciona esse efeito argumentativo.

Os dois versos seguintes são os últimos. Os acordes dessa parte são os mesmos dos versos “de onde a indiferença/ temperada a ferro e fogo?”, e mais uma vez podemos apreender da metáfora utilizada uma violência sofrida pelo orador, e também por seus pares, já que aquele é o porta-voz de todos, “esse ar deixou minha vista cansada, / nada demais”. Aqui podemos enveredar por vários caminhos, vária possibilidades de sentido, uma especialidade da literatura que vagueia sem permissão nas canções mais elaboradas, com uma letra mais compromissada com a língua e cultura.

A vista se cansou por conta desse ar. O elemento anafórico refere-se a quê? O mais próximo de ar é o cinza do céu, que nos remete a poluição atmosférica. Mas o que é “vista cansada”? Musicalmente dividimos a canção em duas partes. Assim também se divide a letra. A voz inicial começou cheia de ímpeto e questionamentos. Mas no decorrer da canção percebemos que o ativismo vai enfraquecendo. E no fim um sinal de uma aparente derrota. Mas não é nada demais. O que parece ser apenas um lamento, pode ser lido como protesto, no sentido da efemeridade das coisas ou ainda se ousarmos em analisar a canção sob o ponto de vista de uma narrativa.

Podemos supor que o enredo dessa canção não esteja em sua ordem linear. Assim, a primeira parte seria o que acontece depois e o que deveria ser o desfecho é na verdade a complicação. A vista ficou cansada por causa desse ar que a deixou assim, nada demais. Ao lermos “vista cansada” como metáfora de morte, o que não é nada de mais acaba se tornando motivo de protesto, daí um orador, uma voz, se fundindo e confundindo com seu auditório. Uma morte não é demais como também não é demais pedir justiça e paz. Mas de onde vem, então, essa indiferença?

Vem de dentro de cada um. Vem das relações entre esses e desses com o mundo. Vem das fábricas e de seus trabalhadores, que poluem o ar e matam o verde, para sobreviverem, o que pode não acontecer de forma esperada, já que o próprio ar cansa as vistas de quem vê. Fábrica não é só uma canção de protesto contra a poluição da natureza ou a injustiça humana. Vai além de simples gritos e súplicas por um trabalho digno. Deve haver um lugar sem escravidão e esse lugar pode ser na fábrica de sonhos e esperanças reais de uma vida sadia para todos, mas quem guarda os portões dessa fábrica?

 (Texto de Marxwel Alves Pantaleão)



Marxwel Alves Pantaleão, formado em Letras Português pela UFES, é professor de português e literatura. Além de poesia, escreve contos, crônica e letras de música. Não se considera um poeta, mas sim um fascinado pelas letras. Gosta de Legião Urbana e todas as vertentes do Rock. No romantismo e no Simbolismo se encontra, mas flerta com o modernismo. Mantém um Blog na rede (www.marxletras.worpress.com) onde publica as Letras dele mesmo e de seus heterônimos (sim, ele gosta de Fernando Pessoa e se acha!).




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