Cultura
ANÁLISE DA CANÇÃO "PAIS E FILHOS", DO GRUPO LEGIÃO URBANA.
Pais e Filhos. Legião Urbana (Composição: Dado Villa-Lobos / Renato Russo / Marcelo Bonfá)
Estátuas e cofres
E paredes pintadas
Ninguém sabe o que aconteceu
Ela se jogou da janela do quinto andar
Nada é fácil de entender
Dorme agora
É só o vento lá fora
Quero colo
Vou fugir de casa
Posso dormir aqui com vocês?
Estou com medo
Tive um pesadelo
Só vou voltar depois das três
Meu filho vai ter nome de santo
Quero o nome mais bonito
(Refrão)
É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã
Por que se você parar, pra pensar, na verdade não há
Me diz por que o céu é azul
Explica a grande fúria do mundo
São meus filhos que tomam conta de mim
Eu moro com a minha mãe mas meu pai vem me visitar
Eu moro na rua não tenho ninguém
Eu moro em qualquer lugar
Já morei em tanta casa que nem me lembro mais
Eu moro com os meus pais
(Refrão)
É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã
Por que se você parar, pra pensar, na verdade não há
Sou uma gota d'água
Sou um grão de areia
Você me diz que seus pais não lhe entendem
Mas você não entende seus pais
Você culpa seus pais por tudo
E isso é absurdo
São crianças como você
O que você vai ser
Quando você crescer?
(URBANA, 1989, Encarte p. 3)
A união de vários “eus” por excelência está em Pais e filhos. A canção reúne em sua letra várias vozes de pais e filhos em diversas situações do quotidiano familiar. Todos esses “eus” que aparecem na canção são fechados. E já no primeiro verso percebemos isso: “estátuas” figuras frias e imóveis “e cofres” fechados com chave e segredo “e paredes pintadas”, não se sabe o que tem por trás dessas paredes. No verso seguinte percebe-se a que fim leva essa falta de comunicação entre os “seres” existentes nos primeiros versos, “ninguém sabe o que aconteceu”, não se tem noção de nada do que ocorreu “ela se jogou da janela do quinto andar”. Nesse verso temos o relato de um suicídio. Agora fica fácil entender porque ninguém sabe o que aconteceu, são todos estátuas e cofre e paredes pintadas, não há calor, diálogo, confiança e compreensão. Mas outro “eu” sentencia: “nada é fácil de entender”. O que não é fácil não é entender por que alguém se matou ou por que ninguém sabe de nada, mas compreender o por quê que estão todos fechados. Esse é um tema que extrapola as leis do tempo. É constantemente contemporaneizado pelas relações sociais as quais que vivemos.
Nos próximos versos temos várias vozes, ora de pais ora de filhos. Nos versos “dorme agora / é só o vento lá fora” está tipicamente coincidindo com a fala de um pai ou uma mãe, que tranqüiliza o filho e pede-lhe que volte a dormir. Se ele está dizendo que é só o vento lá fora, fica pressuposto que não há mais nada além do vento, de forma que ele, o filho, não precisa ficar com medo, por isso que pode dormir agora. O que pode estar implícito é a qualidade de proteção que o “eu”, o qual supomos ser de um adulto (pais) e a relação com o “você” para quem ele fala.
Em seguida, nos próximos versos, uma seqüência de falas de “filhos”. O mesmo filho que um dia disse “quero colo” diz “vou fugir de casa”. Querer colo implica em infantilizar-se. Mesmo os adultos quando pedem colo se colocam na situação de alguém desprotegido, de criança. Uma pessoa só foge de onde está enclausurada, de um lugar não desejado para estar naquele momento. Todos essas pressuposições se repetem nos outros versos dessa mesma estrofe: “posso dormir aqui com vocês / estou com medo / tive um pesadelo” falas tipicamente de crianças que dormem em seus quartos sozinhas que ainda têm medo de escuro, “bicho papão” ou coisas assim. Mas quando essas crianças crescem, elas, quando não querem fugir para viver suas vidas sozinhas, começam, às vezes por si mesmas, a ditarem suas próprias normas: “só vou voltar depois das três”.
Em seguida temos a fala de alguém que nem é pai ainda, mas já deseja o melhor para o seu filho, é comum os pais quererem ver nos filhos o que eles, pais, admiram. O Renato tinha uma formação Católica, lia sempre a Bíblia e nesse trecho aparece uma informação que alude às preferências do autor, tanto que foi nessa época que os filhos dos três legionários nasceram, corroborando com a idéia das possíveis influências que se refletem na música. “Meu filho vai ter nome de santo / quero o nome mais bonito”, quem diz essa frase, diz que os nomes de santos são os mais bonitos, e também o sentimento de ver no filho aquilo que é mais bonito.
O refrão dessa canção é todo em defesa do amor. “É preciso amar as pessoas como se não houvesse o amanhã”, uma espécie de carpem die do amor. Mas há uma justificativa para todo esse amor, a possibilidade de não haver futuro. Para aquele “eu” que cometeu suicídio, por exemplo, não houve amanhã. O amor não foi fecundo em sua vida e agora não poderá ser. O segundo verso do refrão é ainda mais sério: “porque se você parar para pensar, na verdade não há”. Não há continuidade, só cortes. Aqui identificamos claramente as marcas argumentativas. O primeiro verso é um enunciado que denota uma necessidade à todos aqueles “eus” e também aos possíveis ouvintes da canção, pressupondo uma falta de amor. Como se estivesse elíptico um “diante do exposto, temos a necessidade de amar ...”. E amar muito, como se hoje fosse o último dia. Em seguida utiliza um operador argumentativo para justificar o enunciado anterior porque. Então se dirige a um “você” chamando-o a dialogar consigo e com o mundo, para evitar os cortes e dá continuidade no amor, e decreta, com autoridade que existe uma verdade e essa é que não existe amanhã para quem não ama.
Mais polifonia nos próximos versos. Em “me diz por que é que o céu é azul / e explica a grande fúria do mundo” pode ser qualquer pessoa que tenha essas dúvidas sobre o mundo, ou mesmo, um “eu” que pergunta a si mesmo. Por que temos um mundo tão feroz e violento, será que não existem lugares nesse mundo que seja amor e não ódio? Mas esse mundo está mudando, as coisas não são mais como antigamente. “São meus filhos que tomam contam de mim”, onde um pai diz a inversão hierárquica, quando os filhos são responsáveis e pensam no bem estar da família e não só deles. “Eu moro com a minha mãe, mas meu pai vem me visitar” um “eu” de pais separados, e em seguida outro com nenhum pai ou mãe: “moro na rua não tenho ninguém / moro em qualquer lugar”, crianças de rua, abandonadas. E para os que têm família, “já morei em tanta casa que nem me lembro mais” sem moradia fixa, mudando sempre que vence um contrato de aluguel ou simplesmente “eu moro com meus pais”. Nesse verso temos uma alusão aos filhos que, mesmo depois de formados, ainda moram na casa dos pais.
Logo após a repetição do refrão têm dois versos que demonstram a proposta espiritual do disco o qual essa canção faz parte. Um verso extraído do alcorão “sou uma gota d’água” e outro da bíblia “sou um grão de areia”, exemplos da insignificância que somos sem o Amor. Sobre o disco Renato diz: “Nós não estamos falando de religião, estamos falando do lado espiritual do ser humano. Não estamos falando que Deus existe ou não existe. O disco não lida com a questão da existência de Deus, e sim com a idéia de Deus. O disco não é de catecismo religioso” (RUSSO, 2000, p. 209).
E encerra a música com um outro “eu” que dá conselhos a pessoas que são “filhos”, e diz isso como se ele, a pessoa que fala, tivesse descoberto isso a pouco. “Você me diz que seus pais não entendem / mas você não entende seus pais”, ninguém entende ninguém, pois todos são estátuas e cofres e paredes, não há comunicação. Nesses versos vemos claramente que pais e filhos não se conhecem, por isso não se entendem. Por esse motivo “você culpa seus pais por tudo / isso é um absurdo / são crianças como você”. Eles também precisam de carinho e proteção, de amor. O último verso é um resumo do sentimento de Renato naquele momento e que pode ser o sentimento de qualquer um em qualquer tempo que tiver passando pelo milagre da paternidade, quando descobre que não é somente filho, mas também pai: “o que você vai ser quando crescer”, qual será o seu futuro?
“Para mim, o mais importante com a chegada do meu filho foi a mudança da minha relação com meus pais. Passei a ver toda a situação de uma maneira diferente. Pintou mais respeito, mais consideração. Os pais são sempre pais e, às vezes, a gente tem que se distanciar um pouco para perceber que eles são pessoas normais. É tão forte a relação da gente com eles que, quando criança, você acha que são seus heróis; na adolescência, nega tudo, acha que são horrorosos. Até o momento em que meu filho nasceu, eu nunca havia percebido meus pais como indivíduos. (...) talvez eu pensasse nisso antes também. Mas, para mim, eles sempre pai e mãe. Agora, não. Existem o Renato, a Carminha e eu”. (RUSSO, 1996, p. 85).
Pais e filhos, com escalas típicas do rock, tem uns efeitos e uma levada de Blues. Até mesmo na melodia, o avô (pai duas vezes) se relaciona com seu filho-neto, blues e rock, respectivamente, transformam essa canção de protesto e de lamento em algo romântico: a luta pelo amor fraternal.
(Texto de Marxwel Alves Pantaleão)
Marxwel Alves Pantaleão, formado em Letras Português pela UFES, é professor de português e literatura. Além de poesia, escreve contos, crônica e letras de música. Não se considera um poeta, mas sim um fascinado pelas letras. Gosta de Legião Urbana e todas as vertentes do Rock. No romantismo e no Simbolismo se encontra, mas flerta com o modernismo. Mantém um Blog na rede (www.marxletras.worpress.com) onde publica as Letras dele mesmo e de seus heterônimos (sim, ele gosta de Fernando Pessoa e se acha!).
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