Cultura
LICENÇA PARA CONTAR: JAQUELINE CANEDO
Jaqueline Canedo é carioca, mas vive atualmente no Espírito Santo, estado onde se formou em Letras – Português pela UFES e onde trabalha como professora. Desde criança fascinada pela amplitude que as letras lhe proporcionavam, hoje, escreve sobre o que percebe do mundo ou do seu imaginário de mundo. Confira, abaixo, o conto “Morfeu”:
MORFEU
Penso nos seus olhos toda vez que fecho os meus. Há muito que não sentia um terror tão causticante. A sensação é de ter tido algo corrompido dentro de mim, como se me tivessem roubado a vida com uma violência inaceitável, que me gera um ódio sem tamanho, um desejo de vingança até. Vingança? Raiva eu diria. Não. Vingança. Essa é palavra que me liberta da dor que senti. Mas quem seria meu alvo? Não há culpados. Foi só um sonho ruim. Passará certamente. Afinal, já amanheceu e acordei na minha cama de molas horríveis, como toda manhã; com dor no pescoço, como toda manhã; o vizinho faz barulho como toda manhã. Odeio o vizinho! Espere! Hoje o barulho é diferente. Não é do vizinho. Polícia?! Levam-no num saco plástico _ sem barulho. Quem faria algo assim? E bem ao lado do meu apartamento... Melhor retomar meu início de dia maçante e esquecer a noite passada. Tão conturbada que sinto nem ter dormido realmente. Mas os olhos...
Esses não consigo esquecer. Existia tanto ódio neles, um ódio que quase compreendo apesar de estranhar. É impossível não relembrar aquele sonho. Corria tanto! Escapar era meu único instinto. Aquela fera não poderia se aproximar ou seria meu fim. Obviamente sucumbiria a sua força, ao seu horror. Era grande, bruta e arredia. Totalmente incontrolável em sua fúria e poder destrutivo. Movia-se rápido na noite. Caçando. A fragilidade a atraía. Desse modo, elegia a vítima perfeita. Eu corri para onde não pudesse me encontrar, entretanto, parecia sagaz em sua busca. Ao me deparar com uma ampla avenida, acreditei ser melhor optar por um caminho menos previsível e desci ao subterrâneo do esgoto.
Sentia o cheiro de seu pelo molhado na rua sobre a minha cabeça, porém acreditava que conseguiria despistá-la. Ignorei o fato de que meu medo era facilmente farejável. Quando já me sentia seguro, o urro da besta me fez recordar de que era inútil fugir, era inútil lutar, era inútil resistir. Ela me encontraria aonde eu fosse. Nos esgotos, na mata, na segurança do meu prédio, do meu lar, da minha cama horrível de molas, nos meus sonhos... Que sorte um horror assim só habitar o onírico. Pesadelos me dão uma sensação péssima, mas já disse isso. Já me convenci disso: vai passar, vai passar, vai passar sim. Então, por que o gosto de sangue não sai da minha boca amarga esta manhã?
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