LICENÇA PARA CONTAR: SANDRO BAHIENSE
Cultura

LICENÇA PARA CONTAR: SANDRO BAHIENSE




Sandro Bahiense é professor, bibliotecário e amante das coisas que envolvam escrita. Lançou em 2008, em parceria de Ricardo Salvalaio e de mais 7 colegas poetas, a coletânia de poesias "8 Vezes Poeta", trabalho em que pôde expor um pouco de seus sentimentos e arte. Ficou conhecido entre os colegas da UFES por fazer uma crônica para cada um deles. Além de crônica e poesia, Sandro também escreve artigos de opinião, contos e máximas. Tais trabalhos podem ser vistos em seu próprio blog cujo endereço é http://sandrobahiense.blogspot.com/. Sandro trabalha também, claro, neste blog como um dos colunistas. Confira, abaixo, o conto “Eu versus o improvável”:

Eu versus o improvável

Meu nome é Marcelo China Castro, tenho 30 anos e estou escrevendo esta carta por um único motivo: Acho que o improvável irá me vencer. Explico-me a frente. Desde que nasci tenho sido vítima de uma série de infortúnios em minha vida.

Alguns diriam que é azar, outros que é a Lei de Murphy, os mais positivistas dirão que é o ponto de vista a que vejo as coisas, e os mais fanáticos que o problema é com Deus. Deus? Putz. Já tenho experiência suficiente para descartá-lo (escrevi descartar em minúscula mesmo porque não acredito que haja um deus que persiga tanto a um filho).

Minhas desventuras começaram desde meu nascimento. O cordão umbilical ficou preso em meu pescoço e por muito pouco não fui sufocado por mim mesmo. Felizmente(?) sobrevivi e minhas agruras só se sucediam dia após dia. Daí em diante aconteceu uma série de acidentes e lesões que ocorriam com uma seqüência impressionante. Fui estudo de médicos que tentavam encontrar algum fundo psicológico ou mental para tantos incidentes o que no final das contas não resultou em nada (ainda não havia/há estudo sobre o improvável). Quando comecei a ter consciência de mim foi que pude perceber o quanto era desafortunado.

A começar por uma péssima aparência física. Magro e branco demais eu era vítima de inúmeras piadinhas na escola e, num dia, tentando fugir dos colegas, caí com a boca na quina do escorregador (poderia ter caído em qualquer lugar, mas tinha que ser ali). Perdi 11 dentes, e tive que fazer 6 cirurgias (umas duravam 3 horas em média). Acabei perdendo dois anos de escola por causa disso.

Nos anos que se sucederam eu, mais velho, mas igualmente magro e branco demais, continuava sendo motivo de piadas e perseguição na escola (seria ótimo se naquela época já existisse essas campanhas anti-bullyng de hoje em dia) e, para piorar, começaram a implicar com meu sobrenome (tudo era motivo de piada).

Precisava usar óculos e minha aparência tornou-se bizarra (eu mesmo admito). Era uma vida complicada. Tinha muita dificuldade com matemática e então meus pais decidiram por me pagar uma professora particular. Em seis meses não aprendi nada, mas para meu pai esse período foi ótimo, pois ele transava com a professora todos os dias após minhas aulas. Minha mãe descobriu depois que a professora ficou grávida (ela fez um barraco danado lá na porta de casa). Meus irmãos me culpavam pela separação e mal falavam comigo (ou só falavam pra me xingar) e assim foi até o dia que minha mãe o perdoou e ele voltou (a mulher perdeu o bebê).

Falando em meus irmãos... Um era campeão de futebol na escola e o outro fera na matemática. Eu era um perna de pau clássico e horrível nos estudos. Minha timidez era confundida com arrogância e foram várias as vezes que fiquei reprovado por meio ponto só por picuinha dos professores. Pedi a meus pais que fizesse um supletivo pago, pois era o único jeito de terminar pelo menos o ensino médio (descobri tempos depois que a instituição que fiz o supletivo não era cadastrada pelo MEC o que me faria ter que fazer o ensino médio tudo de novo).

Neste tempo decidi ir ao jogo de meu time (meus pai e irmãos ficaram apreensivos, pois eu era o famoso pé frio), mas decidiram me levar assim mesmo. Assisti ao jogo, mas na saída o improvável aconteceu. Uma briga de torcidas organizadas aconteceu do lado de fora e quando vi estava no meio dela. Um cara da torcida rival sacou uma arma e atirou em mim. Ele errou o tiro, porém, com o barulho do disparo, fiquei surdo de um ouvido. Com problemas de visão e audição não tive acesso a algumas coisas como poder dirigir, por exemplo.

No final de minha adolescência me apaixonei por Margô, uma menina que eu conhecia da época de escola. Meu irmão decidiu fazer uma festa lá em casa só para que eu tivesse a chance de conquistar a menina (achei estranho, pois nunca meu irmão fez nada de positivo por mim, mas enfim...). No dia da festa Margô foi solicita e tive a vã ilusão de que poderia ter algum envolvimento com ela. Fomos para o meio da sala dançar "Eva" (o sucesso da época), quando só pude perceber o clarão que se abriu. Os meninos preparavam uma peça para me pregar. Jogaram tinta e coco de vaca em mim, além de me atirarem com armas de chumbinho. Me senti uma versão masculina de Carrie a estranha, porém (infelizmente) sem os super poderes dela. Uma das rajadas de chumbinho atingiu meu olho esquerdo, deixando-me cego daquela vista.

Meus pais foram rigorosos com meu irmão e o colocaram numa instituição de menores delinqüentes (não preciso nem dizer que ele me culpou mais ainda por isso). Ele ficou lá por dois anos. Me lembro deste dia que, além da humilhação, ouvi algo que me marcou pra sempre. Recordo-me que ouvi meus pais brigando com meu irmão e lhe dizendo que não era para ele fazer nada comigo porque eu tinha problemas mentais. Oras eu não tinha problemas mentais, o improvável era que conspirava contra mim.

Ouvindo isso decidi contra golpear o destino e passei a lutar pela minha vida. Não ia deixar o improvável me vencer. Mesmo com dificuldades entrei num desses cursinhos preparatórios para tentar uma vaga numa empresa de informática.

Aproveitando-me do número de vagas para deficientes consegui a aprovação. Liguei para os meus pais empolgado com a notícia e eles decidiram me levar para comemorar numa pizzaria. Infelizmente eu não pude ver os rostos de satisfação deles, pois, no caminho, um caminhão bateu de frente no carro deles os matando na hora. Essa arma do improvável me bateu mais forte, mas estava resoluto a não desistir.

Com o dinheiro do emprego decidi alugar um pequeno apartamento para fugir das lembranças de meus pais. Na primeira semana, por causa de um curto circuito no ventilador de teto, o apartamento pegou fogo. Mesmo não sendo minha culpa o senhorio decidiu por não me dar outro local pra morar.

Como meus irmãos não me quiseram na casa que agora era deles tive que dormir num albergue. Arrumei outro lugar pra morar dias depois. Em meio a tantas coisas ruins uma coisa boa me acontecia. A namorada, ou esposa, sei lá (eles viviam de concubinato, amasiados) do meu irmão falava comigo constantemente pela internet. O motivo das conversas era o mau momento do casamento deles, uma vez que meu irmão vivia bêbado em noitadas e com outras mulheres (mesmo sendo muito bom de bola a vida boêmia falava mais alto e ele não conseguia oportunidades em bons times).

Apesar de todas as reclamações era gostoso conversar com ela e me apaixonei mesmo que platonicamente. Mas o improvável estava à espreita só esperando o momento certo para atacar. E não demorou. Um dia meu irmão descobriu minhas conversas por computador com a mulher dele e, bêbado e possesso, criou em sua mente que ela e eu estávamos tendo um caso (mal sabia ele que, por causa de uma forte diabetes que me acometia, eu não funcionava mais para o sexo).

Inconformado ele pegou uma arma com intuito de me matar. A esposa dele ligou para meu outro irmão a fim de pedi-lo para que evitasse a tragédia. Eles se encontraram em meu apartamento e, após uma frustrada tentativa de desarmá-lo, meu irmão (aquele fera da matemática) acabou disparando a arma em direção ao peito de meu outro, matando-o na hora.

Mesmo com meu depoimento de que foi em legitima defesa meu irmão acabou preso por assassinato. A esposa de meu finado irmão, tempos depois consumida pela culpa, acabou suicidando-se. O improvável me tirava à saúde e meus familiares. Ainda assim lutava contra ele, não queria me entregar.

Minha vista e minha audição (ou o que sobravam delas) começavam estranhamente a falhar mais e foi por causa disso que o improvável me deu mais um golpe. No dia em que seria promovido na empresa decidi sair para comprar pão com mortadela (minha comida favorita para "comemorar" a promoção) e não vi, nem ouvi, as buzinas de um carro vindo em minha direção. Fui arremessado a metros de distância e fiquei 20 dias em coma.

Quando acordei percebi que estava sem minhas duas pernas. Elas foram arrancadas no impacto da batida. Quase cego, surdo e sem as duas pernas passei a ficar em casa sustentado pela assistência governamental. Pessoas que eu contratava vinham me ajudar com os afazeres da casa e eu me distraia somente com minhas imaginações e lembranças (afinal não tinha como ver tv, ler um livro ou ouvir musica).

Até que um dia Margô (aquela que foi minha primeira paixão) bateu em minha porta. Ela disse ter ouvido minha estória na TV e ter se compadecido por mim. Decidiu vir dar seus prestes para me ajudar em troca de nada, segundo ela. Com o tempo Margô dividia as tarefas com as pessoas que vinham me ajudar e não demorou para eu deixasse somente ela tomando conta de mim.

Ela se dizia apaixonada e arrependida pelos erros do passado, pedindo-me perdão constantemente por seus atos. Eu não culpava ninguém. Somente ao improvável. Dias depois de estar convivendo com Margô senti-me estranho ao beber um copo de leite que ela havia me oferecido. Acordei 22 horas depois com minha casa totalmente limpa pela ação de bandidos que obviamente estavam de conluio com ela. Provavelmente Margô me deu algum calmante ou coisa assim para beber. Até minha cadeira de rodas ela levou. Tive que ir me arrastando até a porta (que estava trancada) e batê-la insistentemente, aliados a gritos de socorro, até que alguém me ouvisse.

Uma assistente social do governo me ajudou a retirar novos cartões bancários e documentos (Margô limpou minha conta bancária também) e ir até a delegacia dar queixa dela. Voltei com as pessoas que tomavam conta de mim e, há uma não atrás mais ou menos, recebi minha pior notícia.

Estava com uma doença degenerativa que faria com que meus órgãos falhassem até que eu "parasse de funcionar de vez" e morresse. Tais sintomas começariam pela perda de parte da audição e da visão (se eu tivesse recebido esse diagnóstico antes poderia estar com minhas pernas agora, mas o improvável não seria tão bom assim comigo).

Hoje dito essas palavras com os últimos recursos que me restaram: Minha mente e minha voz. Sinto-me perto da morte. Me dói saber que o improvável vencerá. Estou confuso e tonto. Acho que é a hora. É você? Me diga do porque disto tudo? Enfermeira desligue o grava.... Senhor? Senhor? Acorde... Senhor?............. Hora da morte 22:46 horas.   




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