O BUDISMO MODERNO DE AUGUSTO DOS ANJOS
Cultura

O BUDISMO MODERNO DE AUGUSTO DOS ANJOS



Augusto dos Anjos (1884-1914) apresenta características de várias escolas literárias. Destarte, classificações não são pertinentes e o foi motivo desta análise é o legado da poesia augustiana, já que “trata-se de um poeta poderoso, que deve ser mensurado por um critério estético extremamente aberto que possa reconhecer, além do ‘mau gosto’ do vocabulário rebuscado e científico, a dimensão cósmica e a angústia moral da sua poesia”, revela Bosi em “História concisa da literatura brasileira” (2006). Ademais, este artigo incide sobre os recursos semânticos do poema “Budismo moderno”, do livro “Eu” (1912):

Tome, Dr., essa tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo meu coração, depois da morte?!

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contacto de bronca destra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;

Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!

O budismo do eu lírico é moderno. “Por certo recebe esse adjetivo em oposição ao budismo mais antigo, primitivo. Nossa leitura vincula o budismo antigo ao oriente e o moderno ao ocidente”, apontou Elvis B. Aleixo no livro “A expressão do sagrado budista na poesia de Augusto dos Anjos” (2008).
O budismo é a doutrina fixada na crença do desapego material e disseminada por Buda, conforme os estágios das quatro nobres verdades:
1. Tudo é dor;
2. A dor nasce do desejo;
3. A dor cessa com a extinção do desejo;
4. Para extinguir o desejo deve-se seguir o caminho dos oito passos da tradição budista.

Já o budismo moderno enfatiza a meditação, a leitura e a compreensão racionalista dos textos sagrados.
Na estrofe um, temos o eu poético solicitando a um médico uma cirurgia fatal. O primeiro verso é de provocação, primeiro pelo emprego ousado e inusitado da abreviatura de doutor, “Dr.”, e pelo pedido que o eu faz ao médico, já que para o senso comum o papel do médico é salvar vidas e não realizar uma cirurgia cujo resultado será fatal. O Eu justifica seu pedido alegando que não se importa que os vermes roam suas carnes, seu coração, pois está morto. O eu lírico de “Budismo moderno” aparenta não ter medo de ser cortado, já que se mostra corajosamente indiferente às consequências de sua petição. Podemos afirmar, baseados numa afirmação de Alexei Bueno livro “Augusto dos Anjos. Obra Completa” (1994), que “o eu poético se condena sem apelação à desaparição total enquanto especificidade individual”.

Ciência

É sabido do uso de termos científicos na obra augustiana. Na segunda estrofe, esses termos são usados ao lado de expressões coloquiais. As passagens onde isso ocorre são inúmeras. Assim, na mesma estrofe temos a expressão prosaica “Ah! Um urubu pousou n a minha sorte!”  antecedendo termos científicos como “diatomácias” e “criptógama”. Depois do primeiro verso, que é uma lamúria que se tornou popular, o eu lírico revela que a má sorte não é exclusividade dele, pois também agoura as “diatomáceas da lagoa”. As diatomáceas são algas unicelulares providas de pigmentos fotossintéticos, protegidas por uma cápsula silícea formada por valvas, portanto, ínfimos seres, impossíveis de serem observados a olho nu. A “criptógama cápsula” é o invólucro que protege as diatomáceas do contato externo. Não obstante, a proteção é fragilíssima.
Aqui, as diatomáceas são destruídas pelo golpe repentino de um braço estúpido. O extermínio abrupto das “diatomáceas da lagoa” nada mais é que uma figura da efemeridade e debilidade da vida humana. A “lagoa” representa o mundo em que os homens vivem. As “diatomáceas”, os homens. A “criptógama cápsula” simboliza os artifícios humanos que objetivam assegurar a vida. E “o contato de bronca destra forte” são as fatalidades imprevisíveis que a ninguém poupa.

Densidade

Nos dois últimos versos ocorre uma das maiores forças da poesia augustiana, a densidade. Este recurso é muito rico, haja vista que “se tomarmos como sílabas perfeitas as consoantes desacompanhadas de vogal, grande número de versos passarão a ter mais de dez sílabas, distribuídas em segmentos proporcionais”, aponta Proença.
Na terceira estrofe, o eu poético sugere também a dissolução da existência corporal: “Dissolva-se, portanto, minha vida / Igualmente a uma célula caída”, ideia muito ligada ao budismo.
Dissolvido o Eu, resta de si ainda algo que é perpetuamente inextinguível, isto é, o “agregado abstrato das saudades”. O “agregado” é um termo afim ao budismo, no entanto, o agregado do poema não possui existência material, mas faz sentir a ausência do eu lírico dissolvido, mantendo aceso o sofrimento já que a saudade traz em si uma consternação inerente. Algo substancialmente díspar do budismo oriental, que não ensina a preservação de nenhuma espécie de agregado depois de alcançado o nirvana.
Por fim, o Eu se refere à presentificação do poeta por sua obra: “O agregado abstrato das saudades’ de ‘Budismo moderno’ é o ‘último verso’ que não se silencia e mesmo na ausência do poeta o presentifica. Destrate, temos no poema, mormente na ‘dissolução’ e no ‘agregado’, os conceitos que delineiam o budismo moderno augustiano”, como observou Aleixo.

(Texto de Ricardo Salvalaio publicado no Caderno Pensar, do jornal A Gazeta, no dia 24/09/2011)



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