Cultura
CLARICE LISPECTOR - Entrevista  E  BELOS TEXTOS
 
 
Entrevista de Clarice Lispector 24m.
                        Esta importante entrevista com a  nossa Clarice Lispector
 foi apresentada pelo programa Panorama Especial e  transmitida pela TV Cultura em 1977. Através desse encontro com Clarice 
 nós percebemos o quanto Ela é natural e existencialista 
ao tratar do  Homem e de si mesma, ela consegue expor em seus trabalhos  todos esses sentimentos que fazem parte da vida 
do sujeito como o Medo,  Angústia, Desprezo,
 dentre outros afirmados pela própria Clarice  Lispector. *Fonte do Vídeo: Canal israelbarros**Editado por André Bispo através do Editor de Vídeos do YouTube
Clarice Lispector
 ? Textos
Clarice Lispector ? Textos Originais Selecionados (sem erros)
A PERFEIÇÃOO  que me tranquiliza é que tudo o que existe, existe com uma precisão  absoluta. O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete não transborda  nem uma fração de milímetro além do tamanho de uma cabeça de alfinete.  Tudo o que existe é de uma grande exatidão. Pena é que a maior parte do  que existe com essa exatidão nos é tecnicamente invisível. Apesar da  verdade ser exata e clara em si própria, quando chega até nós se torna vaga  pois é tecnicamente invisível. O bom é que a verdade chega a nós como  um sentido secreto das coisas. Nós terminamos adivinhando, confusos, a  perfeição.( Clarice Lispector - 2 de novembro de 1968) (Digitado e conferido por mim mesmo e Rebeca dos Anjos em 10 de novembro de 2012, no livro A descoberta do mundo (crônicas publicadas no Jornal do Brasil de 1967 a 1973). Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 155)
 INTELECTUAL? NÃO.Outra  coisa que não parece ser entendida pelos outros é quando me chamam de  intelectual e eu digo que não sou. De novo, não se trata de modéstia e  sim de uma realidade que nem de longe me fere. Ser intelectual é usar  sobretudo a inteligência, o que eu não faço: uso é a intuição, o  instinto. Ser intelectual é também ter cultura, e eu sou tão má leitora  que, agora já sem pudor, digo que não tenho mesmo cultura. Nem sequer li  as obras importantes da humanidade. Além do que leio pouco: só li  muito, e li avidamente o que me caísse nas mãos, entre os treze e os  quinze anos de idade. Depois passei a ler esporadicamente, sem ter a  orientação de ninguém. Isto sem confessar que ? dessa vez digo-o com  alguma vergonha ? durante anos eu só lia romance policial. Hoje em dia,  apesar de ter muitas vezes preguiça de escrever, chego de vez em quando a ter mais preguiça de ler do que de escrever. Literata  também não sou porque não tornei o fato de escrever livros ?uma  profissão?, nem uma ?carreira?. Escrevi-os só quando espontaneamente me  vieram, e só quando eu realmente quis. Sou uma amadora?O que sou  então? Sou uma pessoa que tem um coração que por vezes percebe, sou uma  pessoa que pretendeu pôr em palavras um mundo ininteligível e um mundo  impalpável. Sobretudo uma pessoa cujo coração bate de alegria levíssima  quando consegue em uma frase dizer alguma coisa sobre a vida humana ou  animal.( Clarice Lispector - 2 de novembro de 1968) (Digitado e conferido por mim mesmo e Rebeca dos Anjos em 10 de novembro de 2012, no livro A descoberta do mundo (crônicas publicadas no Jornal do Brasil de 1967 a 1973). Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 149)E quando acordava? Quando acordava não sabia mais quem era. Só depois é que pensava com satisfação: sou datilógrafa e  virgem, e gosto de coca-cola. Só então vestia-se de si mesma, passava o  resto do dia representando com obediência o papel de ser.( Clarice Lispector ) (Digitado e conferido por mim mesmo e Rebeca dos Anjos em 6 de novembro de 2012, no livro A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, 1ª edição. p. 36) ÂNGELA. ? Eu mal entrei em mim e assustada já quero sair. Eu descubro que estou além da voracidade. Sou um ímpeto partido no meio.Mas de vez em quando vou para um impessoal hotel, sozinha, sem nada o que fazer, para ficar nua e sem função. Pensar é ter função? Ao pensar verdadeiramente eu me esvazio.( Clarice Lispector ) (Digitado e conferido por mim mesmo e Rebeca dos Anjos em 6 de novembro de 2012, no livro Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.54) 
 Não  quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de  fazer sentido. Eu não: Quero é uma verdade inventada.( Clarice Lispector ) (Água viva ? Página 22) *
 Escrever, Humildade, TécnicaEssa  incapacidade de atingir, de entender, é que faz com que eu, por  instinto de? de quê? procure um modo de falar que me leve mais depressa  ao entendimento. Esse modo, esse ?estilo? (!), já foi chamado de várias  coisas, mas não do que realmente e apenas é: uma procura humilde. Nunca  tive um só problema de expressão, meu problema é muito mais grave: é o  de concepção. Quando falo em ?humildade? refiro-me à humildade no  sentido cristão (como ideal a poder ser alcançado ou não); refiro-me à  humildade que vem da plena consciência de se ser realmente incapaz. E  refiro-me à humildade como técnica. Virgem Maria, até eu mesma me  assustei com minha falta de pudor; mas é que não é. Humildade com  técnica é o seguinte: só se aproximando com humildade da coisa é que ela  não escapa totalmente. Descobri este tipo de humildade, o que não deixa  de ser uma forma engraçada de orgulho. Orgulho não é pecado, pelo menos  não grave: orgulho é coisa infantil em que se cai como se cai em  gulodice. Só que orgulho tem a enorme desvantagem de ser um erro grave,  com todo o atraso que erro dá à vida, faz perder muito tempo.( Clarice Lispector ) (A Paixão segundo G.H. ? Página 296) * ?Eu  escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa.  Não altera em nada? Porque no fundo a gente não está querendo alterar as  coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro, não  é??( Clarice Lispector ) (Citação idêntica ao trecho no livro Vir a ser ? Edições 2-3) * PrecisãoO  que me tranqüiliza é que tudo o que existe, existe com uma precisão  absoluta. O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete não transborda  nem uma fração de milímetro além do tamanho de uma cabeça de alfinete.  Tudo o que existe é de uma grande exatidão. Pena é que a maior parte do  que existe com essa exatidão nos é tecnicamente invisível. O bom é que a  verdade chega a nós como um sentido secreto das coisas. Nós terminamos  adivinhando, confusos, a perfeição.( Clarice Lispector ) (A Descoberta do mundo: crônicas ? Página 226)   *Dá-me a Tua MãoDá-me  a tua mão: Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre  foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe  entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e  fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma  nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por  mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir  que é entre o sentir ? nos interstícios da matéria primordial está a  linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração  contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.( Clarice Lispector ) (A Paixão segundo G.H. ? Página 64) *Teu SegredoFlores  envenenadas na jarra. Roxas azuis, encarnadas, atapetam o ar. Que  riqueza de hospital. Nunca vi mais belas e mais perigosas. É assim então  o teu segredo. Teu segredo é tão parecido contigo que nada me revela  além do que já sei. E sei tão pouco como se o teu enigma fosse eu. Assim  como tu és o meu.( Clarice Lispector ) (A Descoberta do mundo: crônicas ? Página 314) *Meu  Deus, me dê a coragem de viver trezentos e sessenta e cinco dias e  noites, todos vazios de Tua presença. Me dê a coragem de considerar esse  vazio como uma plenitude. Faça com que eu seja a Tua amante humilde,  entrelaçada a Ti em êxtase. Faça com que eu possa falar com este vazio  tremendo e receber como resposta o amor materno que nutre e embala. Faça  com que eu tenha a coragem de Te amar, sem odiar as Tuas ofensas à  minha alma e ao meu corpo. Faça com que a solidão não me destrua. Faça  com que minha solidão me sirva de companhia. Faça com que eu tenha a  coragem de me enfrentar. Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo  assim me sentir como se estivesse plena de tudo. Receba em teus braços  meu pecado de pensar. (?)( Clarice Lispector ) (Um sopro de vida: pulsações ? Página 154)    Não  entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é  sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou  muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como  falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom  é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter  loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice.  Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não  demais: mas pelo menos entender que não entendo.( Clarice Lispector ) (A descoberta do mundo: crónicas ? Página 178)  Mas  há a vida que é para ser intensamente vivida, há o amor. Que tem que  ser vivido até a última gota. Sem nenhum medo. Não mata. ( Clarice Lispector ) (A descoberta do mundo: crónicas ? Página 373)  O SegredoHá  uma palavra que pertence a um reino que me deixa muda de horror. Não  espantes o nosso mundo, não empurres com a palavra incauta o nosso barco  para sempre ao mar. Temo que depois da palavra tocada fiquemos puros  demais. Que faríamos de nossa vida pura? Deixa o céu à esperança apenas,  com os dedos trêmulos cerro os teus lábios, não a digas. Há tanto tempo  eu de medo a escondo que esqueci que a desconheço, e dela fiz o meu  segredo mortal.( Clarice Lispector ) (Para não esquecer ? Página 15) 
 Atenção ao SábadoAcho  que sábado é a rosa da semana; sábado de tarde a casa é feita de  cortinas ao vento, e alguém despeja um balde de água no terraço; sábado  ao vento é a rosa da semana; sábado de manhã, a abelha no quintal, e o  vento: uma picada, o rosto inchado, sangue e mel, aguilhão em mim  perdido: outras abelhas farejarão e no outro sábado de manhã vou ver se o  quintal vai estar cheio de abelhas. No sábado é que as formigas subiam  pela pedra. Foi num sábado que vi um homem sentado na sombra da calçada  comendo de uma cuia de carne-seca e pirão; nós já tínhamos tomado banho.  De tarde a campainha inaugurava ao vento a matinê de cinema: ao vento  sábado era a rosa de nossa semana. Se chovia só eu sabia que era sábado;  uma rosa molhada, não é? No Rio de Janeiro, quando se pensa que a  semana vai morrer, com grande esforço metálico a semana se abre em rosa:  o carro freia de súbito e, antes do vento espantado poder recomeçar,  vejo que é sábado de tarde. Tem sido sábado, mas já não me perguntam  mais. Mas já peguei as minhas coisas e fui para domingo de manhã.  Domingo de manhã também é a rosa da semana. Não é propriamente rosa que  eu quero dizer. (?)( Clarice Lispector ) (Para não esquecer ? Página 97) 
 A Cozinheira Feliz, a Grandeza da Sinceridade  ?Therezinha  meu amor. Estás sempre em meu coração. Desde o momento em que a vi meu  coração tornou-se cativo de seus encantos. Ao vê-la meiga e bela senti  minh´alma perturbada minha vida até então vazia e triste. Tornou-se  cheia de luz e esperança acesa em meu peito a chama do amor. O amor que  despertou em mim. Therezinha queridinha do coração é iluminado pela sua  pureza e encontra em meu coração a grandeza de minha sinceridade. Que  felicidade podemos encontrar um dia num coração que pulse junto ao  nosso, irmanados nas doçuras e agruras da vida um coração amigo que nos  conforte uma alma pura que nos adore e leve ao céu doce balada de amor a  mulher querida com que sonhamos. Eternamente seu apaixonado Edgard. Da  Therezinha querida peço-lhe. Resposta. Estrada São Luiz, 30-C, Santa  Cruz é o meu Endereço.?  (Clarice Lispector ) (Para não esquecer ? Página 54)     
*  O Nascimento do Prazer (trecho)O  prazer nascendo dói tanto no peito que se prefere sentir a habituada  dor ao insólito prazer. A alegria verdadeira não tem explicação  possível, não tem a possibilidade de ser compreendida ? e se parece com o  início de uma perdição irrecuperável. Esse fundir-se total é  insuportavelmente bom ? como se a morte fosse o nosso bem maior e final,  só que não é a morte, é a vida incomensurável que chega a se parecer  com a grandeza da morte. Deve-se deixar inundar pela alegria aos poucos ?  pois é a vida nascendo. E quem não tiver força, que antes cubra cada  nervo com uma película protetora, com uma película de morte para poder  tolerar a vida. Essa película pode consistir em qualquer ato formal  protetor, em qualquer silêncio ou em várias palavras sem sentido. Pois o  prazer não é de se brincar com ele. Ele é nós.( Clarice Lispector ) (A descoberta do mundo: crónicas ? Página 159)   Nasci  dura, heróica, solitária e em pé. E encontrei meu contraponto na  paisagem sem pitoresco e sem beleza. A feiúra é o meu estandarte de  guerra. Eu amo o feio com um amor de igual para igual. E desafio a  morte. Eu ? eu sou a minha própria morte. E ninguém vai mais longe. O  que há de bárbaro em mim procura o bárbaro e cruel fora de mim. Vejo em  claros e escuros os rostos das pessoas que vacilam às chamas da  fogueira. Sou uma árvore que arde com duro prazer. Só uma doçura me  possui: a conivência com o mundo. Eu amo a minha cruz, a que  doloridamente carrego. É o mínimo que posso fazer de minha vida: aceitar  comiseravelmente o sacrifício da noite.( Clarice Lispector ) (Agua viva ? Página 44)  
*Sobre a EscritaMeu Deus do céu, não tenho nada a dizer. O som de minha máquina é macio.Que  é que eu posso escrever? Como recomeçar a anotar frases? A palavra é o  meu meio de comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com elas como se  lançam dados: acaso e fatalidade. A palavra é tão forte que atravessa a  barreira do som. Cada palavra é uma idéia.Cada palavra materializa o  espírito. Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de pensar o  meu sentimento. Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o  mais fino invólucro dos nossos pensamentos. Sempre achei que o traço de  um escultor é identificável por um extrema simplicidade de linhas. Todas  as palavras que digo ? é por esconderem outras palavras. Qual é  mesmo a palavra secreta? Não sei é porque a ouso? Não sei porque não  ouso dizê-la? Sinto que existe uma palavra, talvez unicamente uma, que  não pode e não deve ser pronunciada. Parece-me que todo o resto não é  proibido. Mas acontece que eu quero é exatamente me unir a essa palavra  proibida. Ou será? Se eu encontrar essa palavra, só a direi em boca  fechada, para mim mesma, senão corro o risco de virar alma perdida por  toda a eternidade. Os que inventaram o Velho Testamento sabiam que  existia uma fruta proibida. As palavras é que me impedem de dizer a  verdade.Simplesmente não há palavras.O que não sei dizer é  mais importante do que o que eu digo. Acho que o som da música é  imprescindível para o ser humano e que o uso da palavra falada e escrita  são como a música, duas coisas das mais altas que nos elevam do reino  dos macacos, do reino animal, e mineral e vegetal também. Sim, mas é a  sorte às vezes. Sempre quis atingir através da palavra alguma  coisa que fosse ao mesmo tempo sem moeda e que fosse e transmitisse  tranqüilidade ou simplesmente a verdade mais profunda existente no ser  humano e nas coisas. Cada vez mais eu escrevo com menos palavras. Meu  livro melhor acontecerá quando eu de todo não escrever. Eu tenho uma  falta de assunto essencial. Todo homem tem sina obscura de pensamento  que pode ser o de um crepúsculo e pode ser uma aurora.Simplesmente as palavras do homem. ( Clarice Lispector ) (Do livro: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.)  Uma amizade sincera ? Clarice Lispector Não  é que fôssemos amigos de longa data. Conhecemo-nos apenas no último ano  da escola. Desde esse momento estávamos juntos a qualquer hora. Há  tanto tempo precisávamos de um amigo que nada havia que não confiássemos  um ao outro. Chegamos a um ponto de amizade que não podíamos mais  guardar um pensamento: um telefonava logo ao outro, marcando encontro  imediato. Depois da conversa, sentíamo-nos tão contentes como se nos  tivéssemos presenteado a nós mesmos. Esse estado de comunicação contínua  chegou a tal exaltação que, no dia em que nada tínhamos a nos confiar,  procurávamos com alguma aflição um assunto. Só que o assunto havia de  ser grave, pois em qualquer um não caberia a veemência de uma  sinceridade pela primeira vez experimentada. Já nesse tempo  apareceram os primeiros sinais de perturbação entre nós. Às vezes um  telefonava, encontrávamo-nos, e nada tínhamos a nos dizer. Éramos muito  jovens e não sabíamos ficar calados. De início, quando começou a faltar  assunto, tentamos comentar as pessoas. Mas bem sabíamos que já estávamos  adulterando o núcleo da amizade. Tentar falar sobre nossas mútuas  namoradas também estava fora de cogitação, pois um homem não falava de  seus amores. Experimentávamos ficar calados ? mas tornávamo-nos  inquietos logo depois de nos separarmos.Minha solidão, na volta  de tais encontros, era grande e árida. Cheguei a ler livros apenas para  poder falar deles. Mas uma amizade sincera queria a sinceridade mais  pura. À procura desta, eu começava a me sentir vazio. Nossos encontros  eram cada vez mais decepcionantes. Minha sincera pobreza revelava-se aos  poucos. Também ele, eu sabia, chegara ao impasse de si mesmo. Foi  quando, tendo minha família se mudado para São Paulo, e ele morando  sozinho, pois sua família era do Piauí, foi quando o convidei a morar em  nosso apartamento, que ficara sob a minha guarda. Que rebuliço de alma.  Radiantes, arrumávamos nossos livros e discos, preparávamos um ambiente  perfeito para a amizade. Depois de tudo pronto ? eis-nos dentro de  casa, de braços abanando, mudos, cheios apenas de amizade. Queríamos tanto salvar o outro. Amizade é matéria de salvação.Mas  todos os problemas já tinham sido tocados, todas as possibilidades  estudadas. Tínhamos apenas essa coisa que havíamos procurado sedentos  até então e enfim encontrado: uma amizade sincera. Único modo, sabíamos,  e com que amargor sabíamos, de sair da solidão que um espírito tem no  corpo. Mas como se nos revelava sintética a amizade. Como se  quiséssemos espalhar em longo discurso um truísmo que uma palavra  esgotaria. Nossa amizade era tão insolúvel como a soma de dois números:  inútil querer desenvolver para mais de um momento a certeza de que dois e  três são cinco. Tentamos organizar algumas farras no apartamento, mas não só os vizinhos reclamaram como não adiantou.Se  ao menos pudéssemos prestar favores um ao outro. Mas nem havia  oportunidade, nem acreditávamos em provas de uma amizade que delas não  precisava. O mais que podíamos fazer era o que fazíamos: saber que  éramos amigos. O que não bastava para encher os dias, sobretudo as  longas férias.Data dessas férias o começo da verdadeira aflição. Ele,  a quem eu nada podia dar senão minha sinceridade, ele passou a ser uma  acusação de minha pobreza. Além do mais, a solidão de um ao lado do  outro, ouvindo música ou lendo, era muito maior do que quando estávamos  sozinhos. E, mais que maior, incômoda. Não havia paz. Indo depois cada  um para seu quarto, com alívio nem nos olhávamos. É verdade que  houve uma pausa no curso das coisas, uma trégua que nos deu mais  esperanças do que em realidade caberia. Foi quando meu amigo teve uma  pequena questão com a Prefeitura. Não é que fosse grave, mas nós a  tomamos para melhor usá-la. Porque então já tínhamos caído na facilidade  de prestar favores. Andei entusiasmado pelos escritórios de conhecidos  de minha família, arranjando pistolões para meu amigo. E quando começou a  fase de selar papéis, corri por toda a cidade ? posso dizer em  consciência que não houve firma que se reconhecesse sem ser através de  minha mão. Nessa época encontrávamo-nos de noite em casa, exaustos  e animados: contávamos as façanhas do dia, planejávamos os ataques  seguintes. Não aprofundávamos muito o que estava sucedendo, bastava que  tudo isso tivesse o cunho da amizade. Pensei compreender por que os  noivos se presenteiam, por que o marido faz questão de dar conforto à  esposa, e esta prepara-lhe afanada o alimento, por que a mãe exagera nos  cuidados ao filho. Foi, aliás, nesse período que, com algum sacrifício,  dei um pequeno broche de ouro àquela que é hoje minha mulher. Só muito  depois eu ia compreender que estar também é dar.Encerrada a  questão com a Prefeitura ? seja dito de passagem, com vitória nossa ?  continuamos um ao lado do outro, sem encontrar aquela palavra que  cederia a alma. Cederia a alma? Mas afinal de contas quem queria ceder a  alma? Ora essa.Afinal o que queríamos? Nada. Estávamos fatigados, desiludidos.A  pretexto de férias com minha família, separamo-nos. Aliás ele também ia  ao Piauí. Um aperto de mão comovido foi o nosso adeus no aeroporto.  Sabíamos que não nos veríamos mais, senão por acaso. Mais que isso: que  não queríamos nos rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos  sinceros. (Clarice Lispector) (Felicidade clandestina: contos ? Página 13)- Compre livros de Clarice Lispector no Mercado Livre
 - Falsas autorias - cuidado ao compartilhar!
 - Vídeos da entrevista completa com Clarice, 1977
 
- Amor
 - A Repartição dos Pães
 - Em Busca do Outro
 - Entender é Limitado - vídeo com Abujamra
 - Por Não Estarem Distraídos
 - Precisa-se
 - Silêncio
 
 Fontes:         
                                                                         Enviado em 31/07/2011
 http://www.poesiaspoemaseversos.com.br/clarice-lispector-textos/
 
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