CRÔNICA "RIP", DE BERNADETTE LYRA
Cultura

CRÔNICA "RIP", DE BERNADETTE LYRA




De repente, em meio a tantas mortes de celebridades, que é a palavrinha que agora se usa para botar no mesmo saco tanto aqueles que se tornaram célebres por alguma coisa feita de bom para a humanidade, quanto aqueles que têm seus suados quinze minutos de fama, como Andy Warhol profetizou; de repente, em meio a tantas mortes esvaziadas de seu caráter de dor, luto ou melancolia, de tanto que são pisadas e repisadas na mídia; de repente, não mais que de repente, em meio a tantas mortes de anônimos e famosos, de comandantes e comandados, em meio a tantas mortes, enfim, eu me lembro que é aniversário da morte de uma amiga. E, em memória dela, uso este espaço em que vocês me leem para dizer: “RIP, amiga”. “Requiescat in pace”.

Um dia, um dia muito bonito e com sol, minha mãe me mandara doce de carambola feito em seu fogão de lenha, na Barra. E eu pensava “ninguém faz doce de carambola bom assim”. E só faltava minha mãe para passar a mão de leve por cima de minha cabeça, como ela fazia, para que eu me sentisse feliz. Foi nesse dia que arranjei essa amiga.

Ela provou do doce de carambola e falou: “nunca vi doce de carambola bom assim”.

Era muito engraçada, nossa amizade. Quase não nos víamos, nem nos falávamos. E a amizade aí, mansa, mansinha. Doce e suave. Que nem bicho domado. Nada dessas amizades explosivas de ocasião, que duram alguns meses e desaparecem. Ou amizades de nichos seletos, muito metidas à besta, em que os parceiros trocam figurinhas sobre conceitos filosóficos aplicados às relações humanas e outras tantas bobagens dignas de qualquer roletrando – instrumento inventado por outro amigo meu e que traz, de um lado, uma roda com uma fita gravada com alguns aforismos e, do outro, uma roda com uma faixa que traz o nome de alguns pensadores cultuados (de preferência os filósofos franceses dos anos setenta e oitenta, mas pode haver o nome de alguns alemães, ingleses e outros tantos suecos) e que funciona assim: você gira a primeira faixa e depois gira a segunda. Onde elas pararem e coincidirem, lá estará uma bela citação com o nome de um filósofo, prontinha para o uso e para embasbacar.

A nossa amizade era aquela de um café entre uma aula e outra, um silêncio tranquilo, um comentário sobre um filme ou um livro, um rabisco, um até já... Mas, acima de tudo, era essa coisa impalpável que dá à gente a certeza de em qualquer hora achar a pessoa com o mesmo sorriso, o mesmo gesto, a mesma palavra de solidariedade. Pois amigo que é amigo é assim: um fluir, um fio contínuo, um rio de águas seguras. Mesmo que o mundo role, que o tempo passe e que tudo em volta se modifique.

Minha amiga, ela gostava de música e de falar sobre flores. Nem todas. Preferia violetas. Eu lhe contei de uma vez que plantei uma latada delas sob um pé de flamboyant. E que poucas vingaram. E se alguma espiava entre as folhas, eu corria e cuidava com carinhos de irmã, afofando-lhe a terra, chegando-lhe o adubo. Ela ouviu com delícia. Depois chegou trazendo para mim uma violeta com asinhas de seda, na palma da mão.

Pouco mais eu sei dela. A amizade pede certo resguardamento. É apenas um toque delicado. Uma leve tangência entre as criaturas. Não exige as qualidades imediatas que a gente pode até suportar no amor.

Sei que além de violetas, Brahms e doce de carambola, minha amiga adorava viver.

Ah, estou esquecendo. Era magra, morena e odiava viajar de avião. Um caminhão pegou o carrinho em que ia, na estrada (faz dez anos, havia sol – dizem – um sol muito claro e bonito). E a matou.

(Crônica de Bernadette Lyra publicado no Jornal A Gazeta em 11/03/13)



Bernadette Lyra nasceu em Conceição da Barra, Espírito Santo, em 1938. Formada em Letras, especializou-se em cinema e fez pós-doutorado na Sorbonne, em Paris. Teve contos incluídos em coletâneas holandesas e já foi indicada para o prêmio Jabuti. E-mail: [email protected].



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Anaximandro Amorim (1978) é escritor, advogado, bacharel em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e pós-graduado em Direito pela Escola da Magistratura do Trabalho da 17ª Região (EMATRA - 17ª Região). Membro da Associação...

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