LICENÇA CRÔNICA: ANTONIO ROCHA NETO
Cultura

LICENÇA CRÔNICA: ANTONIO ROCHA NETO



Antonio Rocha Neto é economista, cronista, filósofo e membro da Academia de Letras Humberto de Campos (Vila Velha). Confira, abaixo, a crônica “Dúvidas divinas”, que foi publicada no livro "Pequeno Discurso Sobre a Feiura":

DÚVIDAS DIVINAS

- Pai, “D(d)eus” se escreve com maiúscula ou minúscula?
- Com maiúscula, lógico!
- Por quê?
-  Ora, se até o nome da gente, que não passa de criatura, a gente escreve com maiúscula, imagina que desrespeito não seria escrever o nome de Deus com letra minúscula!
-  Ué, D(d)eus tem nome?
-  Claro, é Deus!
-  Não, eu acho que o senhor está enganado. “D(d)eus” não é o nome de D(d)eus, mas a sua condição. O senhor, por exemplo, não é Onofre, e sim Homem.  Um homem que se chama Onofre, por sinal um nome muito do feio. Mas D(d)eus não. 

Ele não é um D(d)eus que se chama D(d)eus, assim como não existe nenhum homem que se chama Homem. A humanidade é uma condição humana assim como a divindade é uma condição de D(d)eus. D(d)eus não tem nome.  Mesmo porque o nome só serve para nos distingüir uns dos outros, de forma que D(d)eus só precisaria de nome se existissem vários D(d)euses.
-  Onde é que você anda lendo essas coisas?
-  Em lugar nenhum: ando é pensando essas coisas. E tem mais: quando a gente escreve Homem com maiúscula estamos querendo nos referir à espécie humana, e quando escrevemos com minúscula estamos nos referindo a um único homem. Por isso, como D(d)eus é único, talvez seja mais correto escrever “deus”  do que “Deus”.
-  É, pensando sob esse prisma você tem até alguma razão ... . Mas deixa isso pra lá.

Todo mundo escreve “Deus”, não será você quem vai escrever diferente. Vão lhe acusar de heresia!  Além do mais, nos Dez Mandamentos está bem claro: “Não invocarás o meu nome em vão”.  Então Deus tem nome, e se chama Deus!
-  Que bicho é aquele ali pousando no seu copo?
-  Sai pra lá, mosca nojenta!
-  Pois é: era uma mosca ou mosca era apenas o seu nome?
-  Ora, era uma mosca, um inseto chamado mosca! Desde quando mosca tem nome próprio?
-  E mosca se escreve com maiúscula ou minúscula?
-  Pera lá, você não está querendo comparar Deus com uma mosca, né?
-  Não, não. Só quero mostrar que mosca não se escreve com maiúscula por não ser nome próprio, mas condição. Com maiúscula só se for nome próprio ou de espécie, e D(d)eus não é nem espécie nem teve pai e mãe pra colocar nome nele. Nós não somos filhos de D(d)eus? Então; onde já se viu filho botar nome nos pais? Até que seria bom se pudesse: ao menos eu o livraria desse seu nome ridículo!

Nesse momento o filho mais novo, que estava assistindo à discussão, arrisca uma pergunta:
-  Pai, D(d)eus é homem ou mulher?
-  Não é uma coisa nem outra.
-  Então é igual àquele cabelereiro da mamãe?
-  Ave Maria!  Não é nada disso menino: Deus não tem sexo!
-  Ué, então como é que ele conseguiu ter essa porção de filhos?
-  Ele não tem filhos como nós. Ele criou a tudo e a todos. Por isso é que você é meu filho e filho dele, mas de formas diferentes.
-  E Jesus, pai, é D(d)eus ou é filho de D(d)eus?
-  Deus é Pai, Filho e Espírito Santo. Não lhe ensinaram isso no catecismo?
-  Por isso não seja; o senhor também é meu pai, é filho do vovô Nicolas e é do Espírito Santo, e nem por isso é D(d)eus!
-  É, pelo andar da carruagem daqui a pouco você vai estar querendo escrever Deus com minúscula, feito o seu irmão!
O irmão mais velho aproveita a “deixa” e retorna a discussão.
-  Pai, D(d)eus não pode tudo?
-  Pode.

-  Então pode ser escrito com minúscula também, e herege é quem quiser tirar-lhe esse direito. E por falar em Trindade, quando se fez homem D(d)eus preferia a companhia dos poderosos ou dos humildes e pequeninos?
-  Mas que pergunta! Nem merece resposta!
-  Pois não precisa responder. Se E(e)le  preferia a companhia dos humildes e pequeninos penso que estaremos agradando-o mais com o “d” minúsculo que com o maiúsculo.
-  É, tenho que admitir que você está desenvolvendo bons argumentos. Mas ainda acho melhor esquecer esse assunto e escrever “Deus” como todo mundo.
-  Eu até poderia de fato, mas me recuso, porque todo mundo escreve “D(d)eus” porque vêem D(d)eus como sendo o nome de alguém, porque antropomorfizam D(d)eus. Mas já que todo mundo faz questão do uso de maiúscula eu vou satisfazer-lhes a vontade: de agora em diante escrevo “dEUS”.
-  Mas é gramaticalmente errado!
-  A gramática é mera criação humana.  dEUS tudo pode!






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