Bruno Nicoli nasceu em Vitória-ES. Mora em Cariacica e é formado em Comunicação (FAESA) e Letras Português (UFES). Confira, abaixo, o conto “Resquícios da noite”:
Resquícios da noite
A noite estava silenciosa e quente. No cubículo onde moro mal dava para respirar. O ventilador velho e barulhento vibrava e expelia um ar tão quente que parecia um fole soprando brasas. Pra piorar o quarto não tem sequer uma janela, apenas uma pequena báscula no banheiro que dá para um beco onde está erguido um prédio vizinho, única fonte renovável de ar. Todo aquele calor não permitia dormir. O corpo não relaxava. O lençol da cama encharcado de suor. Eu ficava imaginando aqueles que tinham o luxo de ter um condicionador de ar e que naquele momento estavam dormindo o sono dos justos. Vida de merda, essa minha! Não tinha outra opção. O jeito era sair e dar uma volta. Quem sabe assim, caminhando, eu ficava exausto e conseguia voltar e dormir.
Eram duas da manhã. O tempo na rua não era muito diferente daquele ambiente de casa. De qualquer forma ainda era melhor do que estar lá. Não havia viva alma na rua, com a exceção de um grupo de cachorros que faziam a festa perseguindo uma cadela no cio. Parei para observar aquilo e percebi que o mundo animal é muito parecido com o nosso. Só então me dei conta de que realmente somos apenas mais uma espécie animal que modifica a natureza em nosso favor.
Passei pela ponte de ferro e fiquei observando o porto. Decidi me refrescar. Pulei o muro do cais tirei as sandálias e as calças e me atirei nu nas águas sujas da baía. Que frescor! Ficaria aqui pelo resto da vida. Se o inferno realmente existir eu espero poder ficar na varanda, caso vá para lá.
Depois de mais de uma hora dentro d’água, com mãos e pés enrugados, subi as pedras no final do cais, bem abaixo da ponte e ali me mantive, ainda nu, esperando o excesso de água evaporar. Em minutos meu corpo já estava completamente seco. Vesti minha calça, acendi um cigarro e deitei sobre uma porção de lona que estava jogada por ali. Que vidinha de merda!
Às vezes eu penso em suicídio. Vejo algo de poético em quem tem a audácia (e a coragem) de tirar a própria vida. Me lembro de um filme que vi, muito tempo atrás, em que um cara tinha tanto medo de morrer que, paradoxalmente, acabou cometendo suicídio, por não suportar a ideia de como a morte chegaria para ele. Essa história de destino é mesmo assustadora. O fato mais marcante foi que ele se matou no dia do seu nascimento. Vida e morte no mesmo dia. Chocante.
Não podia voltar para aquele moquiço, pelo menos por enquanto, ainda fazia muito calor. Então, decidi caminhar. Moro próximo ao centro e queria ver, com detalhes, como é a cidade por um ângulo diferente. Pulei o muro de volta, atravessei a ponte de ferro e dei por andar pela cidade. Não pelas ruas principais, conhecida por todos, por onde passam os carros e onde as pessoas se aglomeram durante o dia. Não pelos lugares mais importantes, próximo aos pontos turísticos e cruzamentos. Mas sim pelas vielas, pelas ladeiras, becos, escadarias. Queria conhecer os arredores, as ruas mal iluminadas o lado “B” da cidade.
Era impressionante como não havia ninguém. Algumas vezes eu me sentia o único habitante do planeta e confesso que isso até me agradava. Foi quando passando por uma calçada escura, percebi uma escadaria que descia e dava em uma porta que estava entreaberta. Ouvia barulhos que vinham lá de dentro. Movido pela curiosidade, resolvi descer e ver o que havia por trás daquela porta. Vida sinistra! Olhei pela fresta e vi várias pessoas que conversavam de maneira desgrenhada. Empurrei a porta e entrei sem ser notado. Era um local apertado, sujo e desagradável. Havia bêbados que se escoravam no balcão, outros estavam sentados à mesa. Outro dormia em um sofá velho e rasgado no canto da taberna. A falta de ventilação intensificava o cheiro de suor e álcool do local. O que mais me chamou a atenção foi um velho barbudo e bem vestido que estava no fundo da espelunca, na parte mais escura. Sozinho e com poucas reações, ele bebia em um copo embaçado, uma mistura de aguardente e raízes.
O atendente era um tipo que não se diferenciava dos frequentadores. Um velho magro e de unhas sujas que tragava um cigarro de fumo e tratava a todos com indiferença. Me aproximei e pedi uma dose, apontando para uma das garrafas que estavam sobre o balcão. Um dos bêbados ao lado tentava chamar minha atenção me tocando pelo braço e pronunciando palavras sem dicção. Virei o copo de uma vez, entreguei uma moeda ao dono do bar e me retirei do local. Afinal, estava muito quente ali e o que eu menos queria naquele momento era sentir mais calor.
Acho curiosas essas pessoas que vivem marginalizadas. Sempre me atraiu ver como elas não se interessam pelas questões que a sociedade impõe como certas e sadias. Além do mais, acho de uma arrogância imensa ditar o modelo que se deve seguir. O pior de tudo é que se diz que essas pessoas não são felizes. Será? Pode ser. Mas tenho lá minhas dúvidas.
Voltei a caminhar pela cidade. A temperatura estava mais amena. Quando passava por uma rua estreita, avistei de longe uma pessoa sentada no banco de uma pequena praça. Me intrigou ver aquela pessoa ali, sozinha, altas horas da noite. Talvez ela também estivesse sofrendo com as altas temperaturas e decidiu sair, assim como eu. Continuei a caminhar naquela direção e quando me aproximei mais um pouco vi que era uma mulher. Ela se levantou e veio ao meu encontro. Era alta, loira de vestido vermelho com uma fenda que deixava exposta a perna esquerda. O decote só escondia os mamilos. O batom, também vermelho, realçava os lábios carnudos. Tinha um caminhar sensual, ainda que um pouco forçado. Ela veio e parou a mais ou menos meio metro de mim:
- Boa noite – disse ela. O tom grave da voz denunciava o que a roupa e a maquiagem tentavam esconder.
- Igualmente – respondi.
- Não está interessado em um programa?
Fiquei seduzido pela proposta. Apesar de nunca ter me passado a possibilidade de me relacionar com alguém do mesmo sexo. Mas eu estava ali, sozinho com aquela pessoa e propício a novas experiências.
- Quanto custa?
- O valor a gente combina depois. Mas é barato. Você pode pagar.
Enquanto caminhávamos para uma parte mais escura da praça, eu me lembrava de uma conversa que ouvi numa roda de pessoas que diziam que o sexo oral feito pelos homossexuais é realizado com mais propriedade do que o que é feito pelas mulheres. A explicação para isso vinha de que as mulheres faziam somente para agradar aos parceiros, enquanto os homossexuais por gostarem da prática. Resolvi conferir a veracidade dessa constatação.
Consumado o fato, entreguei a ela uma quantia referente ao valor de uma bebida e de um maço de cigarros e segui em frente. Ainda não sabia avaliar se a opinião daquelas pessoas procedia. Talvez precisasse de mais tempo para processar o ocorrido. Vida bandida!
Já passava das cinco da manhã quando resolvi voltar para casa. Alguns carros começavam a circular tímidos nas ruas principais. De cima da ponte de ferro avistava alguns pescadores com suas lanternas começando a luta diária pelo sustento.
O calor havia dado uma trégua e com o cansaço que eu sentia, seria fácil dormir um pouco. Ao chegar, tomei um banho para me refrescar e me limpar da água salgada da maré e também das secreções trocadas com o sujeito da praça. Me deitei. O ambiente, agora estava um pouco mais favorável ao sono. Vida tranquila.