Fabrício Fernandes é autor do livro-reportagem Rosa Helena – Para além da folha de vento (Editora da Universidade Federal do Espírito Santo - Edufes). Também produziu a noveleta O Concurso – A caminho-do-azul-cintilante-majestoso (Editora Encanto das Letras), publicada inicialmente numa coluna literária do Jornal de Brasília. Hoje, escreve o primeiro romance, intitulado provisoriamente O eu sem lastros. Além disso, disponibiliza o livro de microcontos Quitinete (independente) pelo blog http://oimpulso.wordpress.com. Formou-se em Jornalismo pela Faesa. Como jornalista, atuou em assessorias de comunicação governamental e empresarial. Fabrício Fernandes também trabalhou como repórter e subeditor do Jornal de Brasília por três anos. Confira, abaixo, o conto Como se bebesse água de chuva:
Como se bebesse água de chuva I
As janelas gradeadas do meu quarto estavam abertas quando deixei a pensão onde estava hospedado. Elas se abriam para um longo jardim com passeios simétricos. Lá, sentia o cheiro de cigarro a se enfronhar por entre os dedos, a fumaça a se misturar ao ar seco. Agora uma vermelhidão invade todo o corredor do vagão do metrô. A paisagem é a da aridez de campos secos intermináveis. Vejo ao fundo uma enorme bola de fogo amarelenta se locomovendo ao longe por entre torres de telecomunicações – e no instante em que o Sol trespassa ferros acinzentados, sinto solavancos causados pelo impacto violento do metrô deslizando sobre trilhos. Dentro do vagão, a boca estava muda, e os dentes rangiam. Lembro de quando nós dois nos olhamos sérios debaixo da água de mar, e soltávamos bolhas pretas de ar. Emergimos.
Começou então a brincadeira de atravessar por entre as pernas dele num único mergulho. Afundei, e quando submergi fiquei dentro d’água por um tempo além do que meu pulmão suportava. A boca cheia de água salgada de praia, a língua deslizando gelada naquela carne branca, e lisa. Olhos entreabertos tentavam ver o que se passava debaixo d´água. O corpo flutuava; com as mãos trêmulas segurava pernas grossas. Senti vontade de revelar a alguém que naquele dia mar chuva as ondas não deveriam existir. Escutei as gargalhadas que vinham de fora. E continuei a aceitar a brincadeira em silêncio, submerso naquele mar. Desci do metrô. E segui à procura de um bar aberto. Ao encontrar pedi uma cerveja. Uma mulher olhava-me curiosa. Vi que ela tinha um ar cosmopolita. A pele estava queimada de sol. Era bastante magra.
O pescoço desnudo, o corpo se enchendo de ar a cada respirada ofegante. Perguntei seu nome e ouvi: Michel. Como?... Michel era irresistivelmente atraente. Havia uma modernidade tão grande naquele rosto e naquela voz. Michel, Michel, Michel, repeti em voz alta. Fiquei a tentar desvelar a sua existência misteriosa, sem contornos definidos. Quando era criança também me fizera dessa matéria híbrida. Mas o que teria me definido em contornos tão simplórios, circulando por femininos imitativos e desconhecendo a virilidade? De repente Michel desapareceu para dentro do bar. Fui caminhar pela rua. Pisei numa cabeça de peixe e me feri com o espinho. Era uma carcaça endurecida de peixe, a cabeça com os olhos vergados para fora. Esgueirei-me e apertei o pé com os dedos da mão. A dor aliviou. Anoiteceu. Numa viela escura, coberta de copas de árvores altas, vi um rapaz magro que parecia Michel, o ombro encostado na parede com tijolos vermelhos, os cabelos caídos sobre o rosto. E tinha os olhos miúdos. Aproximei-me. A luz da Lua derramava sobre nós uma cor azulada. Senti vontade der levá-lo embora para algum lugar.
Vamos caminhar pela praia, convidei. Pensei em dizer a ele: sou dançarino mas fujo dos movimentos. Foi então que joguei os cabelos para o lado. Ele soltou uma risada alta, e disse: como você ensaia passos o tempo todo. É natural... não faço isso intencionalmente, respondi. Ele disse: parece não dá liberdade para seu corpo se movimentar. Você não sabe de nada, retruquei. Quero ver o mar com você, disse-lhe. Saímos da viela. Foi então que pisei em galhos de árvores quebradas, e de súbito caí. Ele me ajudou a levantar. Disse que não deveria beber tanto assim. Estou aqui ao seu lado sem saber quem você é, e eu sem saber quem eu sou – é estranho, você me entende?!
Como se bebesse água de chuva II
Agora vi Michel sentado na calçada, o corpo todo curvado, a cabeça pendendo pra frente, os pés enterrados na areia da praia. Aproximei-me e vi que os olhos negros dele refletiam casas atrás de nós. Eu me refletia neles também de um jeito como se fosse a continuidade do olhar dele? Sentei ao seu lado na calçada e ficamos os dois a ver garças trançando num píer abandonado, enquanto dizia a ele: não me permiti odiar a minha mãe. E calei-me. Ali ao seu lado era como se uma nuvem espessa nos mergulhasse num escuro denso, cordas de uma embarcação se soltassem do cais, e ele ficasse à deriva. Vi um pescador sentar perto da proa de um barco.
Ele puxou com toda força a corrente do motor acioná-lo. Subitamente um enorme estrondo ocorreu, e aquela caixa branca parecia ter detonado em vários pedaços. Afastamos-nos para ajudar a socorrer o pescador... o autor Fabrício Fernandes assistia ao ensaio de um espetáculo de dança no meio da madrugada, enquanto todos na cidade estavam dormindo. Era uma noite fria e nevoenta. Ao fim do ensaio
Fabrício entregou um envelope marrom a um dos bailarinos. Despediu-se e saiu do teatro. O bailarino voltou para o camarim, sentou num sofá verde musgo com o estofado já rasgado em alguns pontos do assento e abriu o envelope, retirando uma carta. Começou a ler: Sou escritor e estou desenhando as primeiras páginas de um romance. Nele, você vai se pôr na exclusividade do exílio onde não há liberdade. Caminhará sozinho como se bebesse água de chuva, o céu cinzento sobre sua cabeça. Pisará numa cabeça de peixe com palavras pesadas sobre os ombros. Não conseguirá controlar a água-viva. Não suportará o medo de ser só. Mas você precisa se libertar do sonho que avisa a vida. Calar a raiva que você terá de sua mãe, por ela ter não tê-lo amado como você quis, por tê-lo abandonado. Você negará o prazer. Vai se disfarçar na palavra. Vai se congelar num desregramento dançante – a um passo de ultrajar. Agora você está no jogo adolescente.